A Menina da Música

Londres, 2 de março de 1959.


    O homem que entrara pela porta do meu escritório tinha a pele queimada, cabelo grisalho e um bigode bem aparado. Era da minha altura - 1,75 metro - e seus 50 anos estavam bem evidentes em seu rosto cansado e barriga saliente. Demorou um pouco para tirar o chapéu depois que entrou em meu apartamento. Fui incisivo.

    - Posso ajudá-lo?

    Ele sentou sem pedir permissão e falou.

    - Sou o pai do homem que você internou.

    Fitei os olhos dele. Falei calmamente.

    - Que diabos isso significa?

    Olhava-me nos olhos.

    - Susie está morta - disse.

    - Que Susie?

    A pessoa de quem ele falava era Susie Condry. Susie era filha de Draven Condry - um maníaco que estava internado no Wimbledon. Eu havia conhecido a garotinha três invernos atrás. Ela tinha três quando nos encontramos pela primeira vez. Fora encontrada morta. Estava deitada no topo da escadaria da casa de seu avô Desmond Bundy em Bellinzona. Parece que Bundy chegara em casa e percebera que uma porcentagem da prata havia sumido do cofre. A bala que supostamente matara Susie fora encontrada no teto. Bundy fora levado para a delegacia como suspeito, mas depois libertaram-no por falta de provas. Já que a notícia fora publicada em italiano isso era tudo que meu visitante sabia sobre o caso. Ele queria que eu descobrisse o assassino e o motivo.

    - Você é pai do Draven? - falei.

    Ele confirmou com a cabeça.

    - Por quem afinal ele puxou? - perguntei.

    - Pela mãe. Ele é tão louco quanto ela.

    Puxei minha cigarreira e ofereci a ele um cigarro. Ele aceitou. Peguei um também e acendi ambos com um isqueiro.

    - Diga-me o que sabe sobre meu filho.

    Depois de dar uma boa tragada eu soltei a fumaça enquanto comecei a falar.

    - Na ficha de internação estava escrito "psicopata, obsessivo-compulsivo e maníaco-depressivo". Fazia o máximo para ter uma vida normal... embora isso fosse impossível. Tinha ideias estranhas, sua forma de raciocinar no íntimo era bastante literal. Socialmente ele tentava agir de acordo com o que a sociedade considera como normal, não evitava de mostrar seu lado esquisito quando se senti confortável pra isso. Aposto que teve uma infância sofrida e por isso não considerava a pedofilia como... algo censurável. Era um passatempo pra ele.

    O homem olhava-me seriamente. Ele concordava com tudo.

    - Mas o que a menina estava fazendo em Bellinzona? - falei. - Por que não estava com a família?

    - Você realmente não sabe?

    - Se soubesse não estaria perguntando.

    Ele deu uma enorme tragada e soltou uma grande quantidade de fumaça pelos lábios. Quando recomeçou a falar seu olhar já estava vago e úmido como o de um peixe tentando respirar na areia.

    - Susie era um tesouro. Mais do que isso. Todo pai gostaria de ter uma filha como ela. Ela era inteligente, ela era doce... Ela era simplesmente um tesouro. Mas a mãe dela cheirava coca e ela não via o pai há meses. Conheceu a irmã dela, Anna?

    - Conheci. O pai abusava dela.

    - Pois bem. Anna... - ele falou ignorando minha última frase - foi a mãe que Susie nunca teve. A única que prestava alguma atenção nela. Mas adivinhe só. Ela morreu. Atropelada. 15 anos de idade.

    Ele fez uma pausa para dar uma tragada, e isso me deixou mais curioso ainda.

    - Continue.

    - Sim... Bem, ela, Susie... ficou tão deprimida... que ficou irreconhecível. Seus olhos afundaram na cara, começou a perder o cabelo e perdeu 5 quilos. Então Serina morreu. Eu não sei a razão ao certo; acho que foi a coca ou... não sei. Ela tinha... trinta e dois? Não. Isso, 32. Então mandaram Susie para a casa de Desmond, porque... Bem, ele era rico, eu era alcoólatra e... Bem, eu apenas segui meu instinto. Então me ligaram na sexta-feira dizendo que Desmond havia se embriagado e saído de casa. Disseram que alguém havia entrado na casa, roubado o dinheiro do cofre e alvejado a menina. Acho que foi na cabeça. Acho que ninguém prestou atenção nisso. Acho que foi na cabeça. Digo, ela estava com sangue no cabelo.

    Fiquei olhando para ele com dor de cabeça. Mas estava interessado no caso. E ele me olhava como um jogador de xadrez. Estava esperando derrubar meu rei. Só que eu não fiz nada. Fiquei quieto.

    - Vou ter que pagar sua passagem para Bellinzona, não vou? - ele disse carrancudo.

    - É.

    Aquele sujeito não tinha amigos. Bem, talvez tivéssemos um em comum. Um que estava sempre disposto a ouvir nossos problemas e a tentar solucioná-los - um certo demônio da garrafa chamado Jack. Jack não estava disponível para nenhum de nós dois naquele momento. Mas até aí o que precisávamos poderia ser arranjado sem a ajuda dele: satisfação. Em outras palavras, o que ele queria era o assassino de Susie. E eu queria dinheiro.


Londres, 2 de janeiro de 1956.


    Um novo ano havia começado, e o clima ficava mais gelado a cada dia. Como não havia nada melhor para fazer no apartamento 20 do quarto andar do edifício Noble Village, em Tottenham, eu estava sentado à escrivaninha. Estava com meio copo de uísque. O rádio estava ligado e tocando um jazz melancólico. Eu não estava exatamente na miséria; ainda assim havia tempo que eu não comia bem.

    Era nisso que eu estava pensando quando a porta se abriu e uma moeda caiu dentro do meu drinque. Olhei para frente. A mulher fechou a porta atrás de si. Não era uma mulher qualquer. Era ela. Uma das mulheres mais lindas e menos valiosas que conheci. Cinco anos haviam se passado desde nosso último encontro. Seus olhos naquela hora estavam azuis de uma tonalidade bem clara e o cabelo fino e preto era cacheado e volumoso e tampava um dos olhos - cobertos com uma maquiagem escura. Ela também usava um sobretudo de cor cinza-escura e um lenço amarrado no pescoço.

    Quando olhei em seu olho - o único visível - e ouvi sua voz lembranças ruins me vieram à mente. Nossas balas disparadas contra um alvo em comum, uma parceria tóxica e saudosa, noites cínicas de amor, abandonos e decepções... Era como se eu estivesse vivendo um pesadelo dentro do qual já estivera. E não fora agradável da primeira vez. Eu odiava sentimentos nostálgicos. E odiava aquela mulher.

    - Olá, Clint. - A voz dela era lúgubre e grave. Ela a fazia desse modo de propósito. Sua voz relaxada apagava quase que totalmente o sotaque britânico.

    - O que quer aqui? - disse eu.

    Ela ergueu levemente a sobrancelha. Mas continuou com o olhar morto e sombrio.

    - Ei, strudel... Isso não é jeito de receber uma mulher em sua casa.

    Rangi os dentes.

    - Não tem nenhuma mulher aqui... - murmurei.

    Ela inclinou a cabeça e me olhou compassivamente como se eu fosse uma criança que perdeu o balão. Aproximou-se da minha escrivaninha e começou a arranhar levemente o tampo com suas unhas cobertas de esmalte incolor. Aquela mão branca e aparentemente delicada lembrou-me de cenas do passado que contrastavam bastante com o frio da estação naquela época.

    - Acho que já provei para você várias vezes que sou mulher - ela disse.

    Levantei a cabeça e olhei-a nos olhos.

    - Cala a boca - disse.

   - Oh, não fique bravo comigo... Sei que magoei você... Mas agora eu voltei, baby. Vai ser tudo como era antes, eu prometo.

    - Bernie... Sai daqui.

    - Desculpe?

    - Suma - enfatizei depois de pôr um cigarro na boca e acendê-lo. - Se manda.

    Não reparei mais no rosto dela. Não queria olhar para ela naquele momento. Mas ela deu a volta na escrivaninha e parou atrás de mim. Senti suas mãos em minhas faces e o cheiro do mesmo sabonete de gardênia que ela usava cinco anos atrás.

    - Que diabos está fazendo? - perguntei.

    Ela encostou os lábios na minha orelha.

    - Seduzindo você.

    Desvencilhei-me dela.

    - Você é uma vadia egoísta... Tire o traseiro da minha casa!

    - Opa! - Ela riu. Veio para o meu lado. - Está bem, Clint. Só quero que você me ajude num caso.

    Olhei para ela da forma mais austera que consegui.

    - Não quero mais caso nenhum com você.

    - Eu conheço uma garota que está passando por uns problemas e...

    - Minha paciência está acabando, Bernie. Dê o fora.

    - Jesus, você não mudou nada.

    Tirei o cigarro da boca.

    - Mudei. Não conseguia ficar longe de você antes. Agora eu tenho medo de olhar na sua cara.

    Ela deu uma risada marota e arranhou delicadamente meu pescoço.

    - O medo deixa você tão sexy... Ai! Assim você me machuca! Ai! Ai! Ai!

    Bati a porta do escritório com violência. Ela ainda gritou do lado de fora:

    - Ótimo! Fica sozinho, então!

   Voltei a sentar na cadeira. O cigarro estava aceso sobre a escrivaninha. Joguei-o pela janela atrás de mim. Por mim tudo bem se caísse em alguém. Esfreguei o rosto com as duas mãos. Por que ela tinha de voltar aqui? Fiquei com as mãos no rosto por alguns segundos. Precisava de companhia. Abri a última gaveta para averiguar se meu amigo Jack poderia me dar algum consolo... mas eu já havia consumido todos os argumentos dele. Então levantei e, começando a tentar lembrar onde eu poderia encontrar uma boa companhia, saí de casa.

   Caminhei até o Revel's e ordenei uísque. O barman - Einan - pareceu não entender. Então eu repeti.

    - Uísque.

    - Eu entendi, Harper. É que você nunca bebe pela manhã.

    - E você é o quê? Minha mãe? Uísque.

    Ele serviu a bebida contrariado. Tomei tudo num só gole.

    - Mais - disse. Ele serviu outro. Comecei a bebericar aos poucos.

    De repente veio aquele cheiro de gardênia de novo. A mão de uma mulher bateu no balcão. Havia uma fotografia sob a palma dela. Ouvi a voz severa de Bernie.

    - Ela tem 14 anos. Se isso significa mais para você do que seu ego, ligue para mim. Senão, pode continuar a embebedar-se.

    Enquanto ela se afastava eu olhava a foto. A qualidade da imagem era péssima. Mostrava o rosto de uma moça. Era loira. Tinha os cabelos bem lisos. Eram penteados para o lado e presos atrás num coque invisível. Seus olhos bem abertos eram como os de um gato assustado. Seus cílios longos eram o que ela tinha de mais feminino.

    Virei a foto. Havia umas letras e algarismos no verso. Levantei e joguei uma libra no balcão. Caminhei com pressa até Bernie. Ela já havia saído do estabelecimento.

    O apartamento que Bernie estava alugando ficava no oitavo andar de um prédio velho em Folly Lane. Era duas vezes maior que o meu e também mais aconchegante. Sentamos à uma mesinha na espaçosa sala iluminada apenas pela luz da lareira e Bernie acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo. Jogou a caixinha na minha frente e soprou uma fumaça saliente em direção à luminária do teto que balançava sobre nossas cabeças. Fiz o mesmo.

   O nome da moça na foto era Anna. Anna Condry. Ela morava em Walthamstow com os pais - Draven e Serina - e a irmã de três anos, Susie.

   Anna havia aparecido num pub uma semana atrás procurando a polícia. Estava com os olhos inchados e a voz trêmula e dizia coisas como "Preciso voltar para casa. Estou numa situação difícil. Não consigo encontrar minha mãe."

    - E onde você mora, querida? - perguntou Bernie.

    - Em Rugby Road, 3, Walthamstow - ela disse.

   Logo Bernie se lembrou de que esse era o endereço de uma velha conhecida - Serina Bundy - a quem ela não via há anos. Bernie não estava com cabeça para fazer alarde com a polícia. Então se ofereceu para levar a menina em casa. Da última vez que Bernie havia visto Anna esta ainda usava fraldas. Estava irreconhecível agora. No caminho para sua casa Bernie perguntou a Anna o que havia acontecido exatamente.

    - Eu não sei - ela disse. - Meu pai está bravo.

    - Qual seu nome?

    - Anna.

    - Você é filha de Draven e Serina?

    A moça olhou para Bernie.

    - Conhece meus pais?

    - Hum-Hum. Faz muito tempo que não os vejo. Lembro de você também. Acredito que você tinha uns 4 anos na época.

    - E qual o seu nome?

    - Bernadett.

    Anna a ficou encarando por um minuto ou dois.

    - Você é muito bonita, Bernadett.

    - Você também é, Anna.

    Quando pararam na frente da casa de Anna ela disse que havia gostado muito da companhia de Bernie. Esta agradeceu e a outra perguntou:

    - Já que vamos despedir-nos, você poderia me dar um beijo?

    Bernie achou aquele pedido um pouco estranho e por isso hesitou.

    - Claro - falou.

    Quando se inclinou para beijá-la, a menina pôs suas mãos leves na cabeça de Bernie e beijou-a na boca. Depois ela abriu a porta do carro e bateu-a e correu para casa. Bernie ficou imóvel por alguns segundos. Estava chocada. Ficou assim por tempo suficiente para que Serina aparecesse e lhe convidasse para tomar chá. Foi um reencontro longo e nostálgico. Draven também estava lá. Conversaram sobre muitas coisas, mas não disseram o que havia acontecido e Bernie não ousou perguntar e muito menos falar sobre o estranho testemunho de afeto da moça. Parecia uma família perfeitamente normal.

   Apaguei meu cigarro no cinzeiro e perguntei a Bernie se Anna havia falado sobre mais alguma coisa com ela.

    - Não, só a irmã dela, Susie, deu-me esta foto, com a qual estava brincando no cercado.

   - Bem... se o que você disse é verdade esta moça é estranha - falei olhando de perto a foto de Anna.

    - Não é a primeira vez que vejo esse tipo de comportamento...

    - Como assim?

   Bernie fechou os olhos e riu como se sentisse pena da minha ingenuidade. Depois olhou para mim.

   - Você sabe que crianças vão direto para a fase adulta depois da primeira relação sexual, não sabe?

    - E está sugerindo que...

    - Não havia nada de sugestivo na aparência dela. Nada que me levasse a crer que algo assim está acontecendo naquela casa. É só... algo que eu não posso explicar. Eu sinto isso. Nos meus ossos.

    - Bernie... Essa é uma declaração audaciosa. Eu não trabalho com intuição.

    - Clint... Você precisa ver por si mesmo.

    - E como exatamente você quer que eu entre naquela casa para investigar? Aparecer lá do nada como seu acompanhante seria rude.

    Ela deu um sorriso maroto.

   - Verdade, strudel, mas se eu convidar Serina para tomar chá e apresentá-la a você, tenho certeza que ela nos convidará também.


Bellinzona, 3 de março de 1959


    Fazia muito frio na rua. Eu e o avô da menina morta - seu nome era Piers Condry - estávamos muito bem agasalhados. Fizemos o check-in no Unione a 300 metros da estação. Deixamos nossa bagagem na suíte e depois fomos a um café chamado Manor. Lá dentro pudemos tirar nossas luvas e chapéus e capotes. Ocupamos uma mesa grudada a uma das janelas.

    - Já esteve em Bellinzona anteriormente? - disse Piers enquanto pegava dois cardápios da mesa vizinha.

    - Não. Você?

    - Não.

    Chequei meu relógio de pulso.

    - Não está um pouco cedo para o chá? - perguntei. Ainda faltava muito para as 17h00.

   - Não, não está - ele respondeu rudemente olhando para o cardápio. - Temos que descobrir o endereço do Bundy.

    - Então ainda não sabe?

    - Vou atrás do endereço. Você fica aqui.

    - Certo...

   Ele levantou e foi até o balcão. Chamei uma garçonete e ordenei um café. Piers voltou em seguida com uma lista telefônica. Sentou e tirou um par de óculos do bolso do casaco. Começou a procurar o nome do homem na letra B. Meu café chegou e eu disse grazie.

    Piers era o tipo de sujeito que não dava a mínima para o que os outros pensavam. Era irritadiço e grosseiro e geralmente falava primeiro e pensava depois.

   - Cá está - disse Piers tirando as lentes do rosto. Aproximou-as da lista enquanto tentava ler através delas as letras minúsculas do endereço encontrado. - Desmond Bundy, 12, Rua Como, Cagliostro.

    - Rua Como - repeti para mim mesmo.

  - Parece que fica perto das montanhas - observou Piers enquanto olhava o mapa que tinha consigo.

    - Então talvez ele goste de viver isolado.

    - Ele é rico e tem mais de 50 anos. Deve ter algum criado.

    - Houve menção de algum na notícia?

    - Não.

    - Então é pouco provável - concluí acendendo um cigarro.

    Depois do Manor fomos até a delegacia e quem nos recebeu foi um soldado. Era um homem de poucas palavras que só dizia "sim" e "não" e que logo nos levou à sala do comissário. O nome deste era Refosco. Era um homem magro de rosto liso com cerca de 1,85 m e com um colete de lã por cima da camisa amarela. Falou conosco em inglês, no entanto seu sotaque era o natural da cidade.

   - Bem, cavalheiros... O caso foi arquivado por três motivos. Falta de testemunhas, falta de suspeitos e falta de provas. Eu sei que isso é o que todo chefe de polícia preguiçoso diz, mas... - ele soltou uma risada idiota. - Tenho razão quando digo que não há mais nada a fazer.

    Piers olhava mal-humorado para ele. Parecia impaciente.

    - Comissário. Podemos dar uma olhada nos arquivos? - falei.

    Enquanto eu ainda falava Refosco inclinou-se para uma das gavetas de arquivo à sua esquerda e jogou em seguida um envelope de cor parda em cima da mesa. Não o poderia ter feito com menos vontade nem se fosse ele o assassino.

    - É todo seu, detetive Harper. Aceitam um café?

    - Não - respondi. Tomei o envelope e o abri. - Suponho que esteja tudo em italiano?

    - Naturalmente.

   Olhei para o rosto do comissário. Sua expressão me passava a ligeira ideia de que estava se divertindo com tudo aquilo. Pus o arquivo na mesa e arrastei-o para o lado.

    - Sr. Condry.

    - O quê? - disse Piers.

    - Se importaria?

    Piers deu uma olhada no documento e pigarreou.

    - Estas... Estas informações são complicadas demais para traduzir.

    Peguei os arquivos das mãos de Piers e tornei a jogá-los na mesa.

    - Sr. Refosco - disse. - É com o senhor.

    Ele riu sem sorrir. Foi um riso curto e invisível.

   - Desculpem, senhores; sou um comissário de polícia, não um agente de turismo. Caso não tenham reparado, estou ocupadíssimo no momento e tenho casos mais importantes dos quais tratar.

    Piers levantou-se bruscamente e agarrou o comissário pela frente do colete.

    - Escute uma coisa, idiota - disse. Minha neta foi assassinada e o assassino está solto por culpa da sua incompetência.

    O soldado ensaiou um movimento, mas Refosco sinalizou com mão, indicando que não precisava ser socorrido. Ficou olhando solenemente para Piers.

    - Quer mesmo ir por este caminho, cavalheiro? Tem uma cela quentinha só esperando para ser ocupada.

    Piers agarrou a roupa do comissário com mais força e em seguida soltou-o bruscamente.

   Eu já havia levantado e aberto a porta. Piers então seguiu-me para as ruas frias e úmidas de Bellinzona.

    Estava ficando terrivelmente frio na rua e já notávamos flocos de neve caindo do céu. Não era apropriado que continuássemos nossa investigação a pé. Por isso sugeri a Piers que alugássemos um automóvel.

     - Você dirige - disse ele.

     - O senhor não dirige? E mesmo assim está acima do peso. O senhor não sai muito de casa, não é?

     Ele não respondeu.

     Alugamos um velho Opel branco. Piers o escolheu por ser um dos mais baratos. Poucos minutos mais tarde paramos o veículo em frente à casa de Desmond Bundy na Rua Como.

     - Este é o número 12 - disse eu.

     Piers não disse nada. Apenas abriu a porta do carro e saiu. Fiz o mesmo.

    Eram quase 16:30 e a neve começava a intensificar-se. O terreno era bastante íngreme e não havia muitas casas na redondeza e ninguém andando na rua. Mas alguns automóveis provavelmente dirigidos por alpinistas passavam por nós em direção às lindas montanhas que se encontravam há menos de uma milha.

     - É menor do que pensei - disse eu. De fato, a casa era grande, mas menor do que eu imaginara. Tinha dois pavimentos e talvez um porão. E uma chaminé de tijolos. A casa em si era de madeira e muito bem construída.

     Tocamos a campainha.

     O homem que nos atendeu tinha a minha altura e cabelos grisalhos. Diferentemente de Piers ele era magro e não tinha a fisionomia cansada. E seu nariz era bem comprido e reto. Tinha cerca de 55 anos.

     - Cosa vuoi? - disse.

    Eu e Piers entreolhamo-nos. Comecei apresentando-me.

    - Olá. Eu sou o detetive Clint Harper e este...

    - Sr. Condry? - enunciou espantado o Sr. Desmond Bundy.

    Piers não se mexeu.

    - Vim com este homem. O nome dele é Harper - disse. - Queremos entrar.

    O Sr. Bundy abriu a porta totalmente e nós adentramos num grande salão vazio com piso feito de um tipo grande e caro de azulejo bege. Cinco passos à frente uma longa escadaria de mármore de 15 ou 20 degraus levava ao segundo andar e estava entre dois corrimãos de aço. Outros corrimãos idênticos àqueles serviam como sacada para as bordas do segundo pavimento dos dois lados da escada. Passamos por entre esta e uma grande lareira apagada e nos dirigimos à sala de jantar. Entramos por uma porta de correr de madeira.

    Desmond Bundy foi para trás de um balcão e pegou em um armário três taças e uma garrafa de vinho do Porto já aberta e consumida pela metade. O pátio podia ser visto por uma janela de vidro aos fundos da casa. À esquerda da janela estava outra porta de correr - sendo esta de vidro. Havia lá fora uma piscina instalada num chão liso de pedra e um Juniperus de quase 10 metros. Eu não podia deixar de pensar então em como devia ter sido a vida de Susie naquela casa.

    - O senhor é um homem muito abastado, Sr. Bundy - falei.

   Bundy pôs as taças com o vinho à nossa frente sem dizer nada. Como estávamos de pé ele convidou-nos a sentar nas banquetas. Aceitamos. Ele bebeu um gole de sua taça.

    - Então, posso repetir minha pergunta, desta vez em inglês? - disse. - O que querem?

    - Não parece óbvio? - disse eu enquanto olhava para o rosto despreocupado e ralo da pessoa.

    - Minha neta está morta. É tarde demais para falar-se no assunto. É também cedo demais. Cedo demais para um homem enlutado. Mesmo assim pergunto-me, Sr. Condry, por que gastou dinheiro vindo para cá. Um telefonema resolveria tudo.

   Senti que Piers estava levemente atordoado. Ele abriu a boca para responder, mas eu falei primeiro.

     - Estamos de passagem. Bellinzona é linda nesta época do ano.

    Bundy olhou para a sua taça como esta merecesse mais atenção do que eu. Bebeu mais um gole.

    - Agora... - disse eu. - Por que não nos conta tudo desde o início? As informações que temos são limitadíssimas. Não falamos italiano bem o suficiente para saber a opinião da imprensa e o comissário Refosco está ocupado de mais para dar-nos atenção. Ainda nem lemos a matéria do Gazzetta na íntegra. Por mais difícil que seja para o senhor falar no assunto é importante que nos conte tudo nos mínimos detalhes. Terei sua colaboração?

   Ele arrastava sua taça no balcão de pedra em movimentos circulares e observava o pouco de líquido que ainda restava. Parou de repente e parecia que ia tomar uma decisão. Virou o restante do vinho garganta abaixo e disse:

    - Está bem. Como o senhor sabe, Sr. Condry, Susie veio morar comigo há dois anos, depois que minha filha, Serina, faleceu. A perícia disse que fora overdose, mas... bem... Nunca cheguei a uma conclusão sobre isso. Nasci em Kansas City, Sr. Harper, mas morei em Londres a maior parte da minha vida. Confesso que jamais havia prestado atenção no tipo de pessoa que minha neta era. Digo, ela era simplesmente... - Ele começou a sorrir melancolicamente. - Ela começou reclamando do estado da casa. Dizia sempre que estava empoeirada. Amarrava um lenço na cabeça, pegava uma vassoura que era duas vezes maior do que ela e varria o chão, todo dia. Parecia feliz longe dos pais. Aqueles dois imbecis nunca fizeram falta para ela. Anna fazia. Havia sido a única que dava a mínima para o que Susie dizia ou fazia. E acho que Anna via a menina como filha. Digo, eram só 11 anos de diferença, mas... Anna foi o mais próximo que Susie teve de uma mãe. Isso até um caminhão atropelá-la certo dia, quando voltava das compras. Parece que ela ainda estava viva quando deu entrada no Whipps Cross, mas morreu em seguida. Suponho que a pequena Susie tenha ficado desesperada. A mãe já estava dormindo na clínica; o pai, no hospício. Ele estava no hospício porque costumava abusar...

     - Ele já sabe... - disse Piers impaciente. Bundy olhou para mim.

     - Continue - eu disse.

     - Bem... - disse Bundy. - Só Deus sabe como Anna conseguia dinheiro para alimentar a si mesma e Susie. Obviamente, eu nada sabia da situação. Não falava com Serina havia meses. Ela me telefonou quando saiu da clínica, mas morreu alguns dias depois. Quando a polícia chegou na casa, o corpo da minha filha já estava cheirando mal. Foi o Sr. Condry aqui quem chamou-os. Telefonou-me e concordamos que seria melhor para nossa neta morar aqui.

    - Na verdade, - interrompeu Piers novamente - eu só "concordei" em deixar Bundy levar Susie porque ele disse que ela estaria bem aqui. Não suspeitava que ele encheria a cara e permitiria que a porta ficasse aberta para algum maluco entrar aqui e matar a pobre criança.

     Piers parecia nervoso em suas palavras. Em contrapartida Bundy refutou calmamente:

     - Eu não deixei a porta aberta.

     - Então, o que diabos aconteceu? - gritou Piers.

    Houve um silêncio de quase um minuto no qual Piers desviou o olhar para sua taça intacta e moveu sua base nervosamente com os dedos.

    - Posso fumar? - perguntei pegando um cigarro no bolso esquerdo do casaco e um isqueiro no direito.

     - Sim - disse Bundy. Ele olhava desconcentrado para o lado. - Pode, sim.

    Soprei uma nuvem saliente para cima e isso deixou o ambiente mais aconchegante e apropriado para um exame. E eu me senti aliviado como uma baleia encalhada após ser devolvida ao mar.

    - Repita o que falou agora - disse.

    - Repetir o quê? - disse Bundy. - Eu não deixei a porta aberta. Tranquei-a. Lembro bem disso.

    - O senhor se embebedou naquele dia?

    - Eu não diria isso. Bebi três taças e saí de casa. É tudo.

    - Bebeu o quê? - disse Piers carrancudo.

    - Isto - respondeu Bundy. Ergueu a garrafa de vinho do Porto.

    - Disse isso aos policiais no dia seguinte? - falei.

    - Sim. Disse tudo a eles quando vieram aqui. E ainda tive de repetir tudo na delegacia. É evidente que não tive a intenção de me embriagar. Se tivesse, não o faria com vinho do Porto.

    - Hum-Hum. E para onde foi quando saiu de casa?

  - Para o Nozari, um grande cassino que fica duas milhas daqui. Considero-me um jogador incurável, vejam. Saí às 20h00 e, quando estava no cassino, cerca de 15 minutos após sentar-me à uma mesa de pôquer, fui abordado por dois homens de uniforme, que me deram a notícia. A porta havia sido arrombada, assim como meu cofre. Minhas economias somavam 25 mil francos. Felizmente, apenas 6 mil foram roubados. Os outros 19 ainda estavam ali. Minha neta estava deitada de costas, com sangue no rosto e nos cabelos. Havia sangue no teto também, logo acima dela. O teto continua manchado, na verdade. A perícia disse que uma bala penetrara no nariz da menina e saíra pela parte de cima da cabeça, pelo lado parietal, se não estou enganado.

   Pude ver que Bundy era um humilde e cavalheiro. Mas geralmente não negava seus desejos; fazia tudo o que tinha vontade.

   - Então foi na cabeça mesmo - disse eu. Chequei meu relógio. 17h00. - E o assassino ainda lhe roubou 6 mil francos, quando poderia ter roubado 25 mil. O senhor conhece alguém que teria motivos para fazer isso?

    Ele sorriu.

    - Sr. Harper, pensei que nunca me perguntaria isso.


Londres, 3 de janeiro de 1956.


    Eu estava com Bernie. Estávamos em seu carro - um Packard preto de 1954 - e aproximávamo-nos da residência dos Condry em Walthamstow. Era uma daquelas casas típicas de filme de ficção científica. Dois andares com porta vermelha e janelas azuis. Era feita de uma madeira impecável e cercada de flores. Não havia cerca em volta dela e o terreno era quase duas vezes maior do que os das residências vizinhas e coberto de grama recém-aparada. Eram 16h30 e o sol ainda estava visível no céu. Bernie desceu do carro com uma saia azul larga e salto alto. Ela havia acabado de tomar banho. Estava com quase nada de maquiagem nos olhos. Vestia uma blusa de lã cor-de-rosa e o lenço no pescoço. Seu cabelo cacheado e úmido estava totalmente jogado para trás e preso com uma tiara. Isso lhe dava um aspecto alegre e nem um pouco sombrio como no dia anterior. Eu estava com meu terno azul.

    Eu ainda não sabia direito o que pensar de tudo aquilo. Também não sabia por que Bernie dizia estar tão preocupada com algo que não lhe traria nenhum lucro. Mas acho que ela só queria ter-me por perto. Ou talvez estava-me usando para enganar alguém. Eu estava naquilo apenas para ganhar o sustento. Mas se a tal Anna estivesse mesmo sendo abusada - ou qualquer coisa do gênero - eu ainda não fazia muita ideia de como descobrir ou provar. Mas Bernie dera-me algumas dicas - afirmando que uma pessoa inteligente poderia descobrir muito do passado de um indivíduo apenas observando seu comportamento. Aquela era uma declaração exagerada para mim.

     - Não esqueça de que meu nome aqui não é Engelmann, strudel. É Wolfgang. - lembrou Bernie.

    Ela tocou a campainha e Serina abriu a porta. As duas se cumprimentaram animadamente com beijos e sorrisos. Serina também foi bem simpática quando apertou minha mão.

     - Sr. Wood - disse ela. - Olá novamente.

     - Sra. Condry.

    A sala-de-estar não era muito grande. Tinha o piso acarpetado e possuía uma televisão e um sofá de dois acentos. Também uma poltrona e uma mesinha de centro. No lado oposto à porta da frente uma escadaria levava ao andar de cima e à direita desta estava a entrada para a cozinha. Me senti aconchegado ali dentro. Era a sala-de-estar que todo homem de família sonharia em ter; mas eu não era um homem de família, embora estivesse fingindo ser um. Comecei a olhar ao redor, como um noivo ansioso para se mudar com sua esposa para um lar aconchegante - algo distante da realidade. Apesar de tudo parecia um lugar apertado para duas crianças crescerem.

    A cozinha era bem maior que a sala. Era também mais espaçosa. Era lá que estava toda a decoração e móveis principais. O piso xadrez estava perfeitamente limpo, o fogão era embutido numa bancada e o cômodo era cercado por armários. Bem no centro havia uma mesa de madeira entalhada - que não combinava nada com o resto das coisas - e sobre ela estava a toalha totalmente coberta com pratos e talheres e xícaras. A mesa acompanhava seis cadeiras, sendo uma delas de bebê, que ficava na ponta mais próxima da sala. Um detetive de subúrbio em Walthamstow, em uma casa onde havia uma cadeira de bebê... Que reviravolta. Eu não sabia no que Bernie estava pensando. Ela atuava tão bem que no fundo parecia mesmo acreditar que era minha noiva.

    Um homem estava sentado em uma das cadeiras. Estava perto da ponta da mesa que ficava mais próxima à entrada da cozinha. Lia um jornal. Era um homem alto com o cabelo da cor de um sabugo de milho depois de ficar o dia inteiro no sol. Vestia terno e sapatos caros. Virou-se para nós e ergueu-se quando adentramos no cômodo. Ele tinha cerca de 1,80 m; seus olhos azuis enfeitavam o rosto de 35 ou 40 anos; havia bastante brilhantina em seus cabelos. Cumprimentou Bernie sorrindo e osculou sua mão. Depois Serina apresentou-nos. Sua mão era a mão de um homem com quem ninguém gostaria de lutar boxe. Era uma mão firme e definida assim como seus braços e maxilar. Mas ressequida. Ele devia lavar as mãos muitas vezes ao dia. E usava óculos.

     - Sr. Condry - disse eu.

     - Sr. Wood. É um grande prazer conhecer o noivo de Bernie.

     - Noivo?

    Bernie enroscou seu braço no meu e abriu um sorriso exagerado.

    - Sim! - disse. - Sim, Jimmy, contei a eles sobre nosso noivado. Espero que não se importe, já que são amigos meus.

    Eu sabia que Bernie estava fazendo aquilo para provocar-me. Mas não havia escolha para mim a não ser entrar em seu jogo. E fiz isso com meu melhor sorriso.

    - Oh, querida, eu disse-lhe que não espalhasse a notícia até que eu comprasse seu anel.

    - Eu sei, strudel, mas é que tenho tanto orgulho em ser sua noiva que não me pude conter.

   - Oh, então era verdade! - falou Serina entornando a água quente da chaleira no bule. - Anna! O chá está pronto! Traga sua irmã!

   Momentos depois nós quatro já estávamos sentados à mesa e Anna apareceu com Susie no colo. A primeira usava uma tiara na cabeça e uma camiseta listrada com gola branca e um laço no peito. Vestia também uma saia larga de poliéster. Ela não mostrava expressão alguma no rosto. Já sua irmã nos encarava de modo soturno. Era difícil enxergar seus olhos porque sua cabeça estava abaixada. Mas era evidente que ela fitava os meus e os de Bernie enquanto segurava firmemente a nuca e a camiseta de sua irmã. Quando elas entraram na cozinha e a claridade iluminou seus rostos percebi que Susie não era apenas um bebê bonito; era muito mais do que isso. Havia intuição em seu rosto corado. Seus olhos eram de um verde raro e saliente. Os cílios longos e as pequeninas sobrancelhas angulosas... O nariz também pequeno e a testa grande... O cabelo loiro e cacheado que se dividia no lado direito da cabeça e caía na frente e atrás das orelhas... Tudo isso fazia-a digna de ser confundida com um anjo da Renascença.

    - Sr. Wood, estas são nossas filhas - disse Serina. - Anna e Susie.

    Eu levantei para cumprimentar Anna e ela apertou minha mão olhando fixamente em meus olhos ainda sem demonstrar emoções.

    - É um prazer, Sr. Wood.

    - Oh, o prazer é totalmente meu, Srta. Condry.

    Ela abriu um sorriso tímido.

    - Chame-me de Anna - disse.

    - Anna. - Olhei para Susie. - E quem seria você, minha cara?

   Anna pôs sua irmã no chão. Esta olhava-me de baixo com os olhos curiosos bem abertos, mas não sorria. Tinha a boca fechada e rosto firme. Estendeu a mão para mim.

    - Olá - disse. - Meu nome é Condry. Susie Condry. Qual é o seu nome?

    - Wood. James Wood. Obrigado por perguntar.

    - Não há de quê. Qual é a sua cor favorita, Sr. Wood?

   Olhei um momento para o resto da família e eles pareciam divertir-se com o modo como Susie interrogava-me. Ela falava enrolado e fino como qualquer outra criança de 3 anos.

    - É preto - disse eu. - Qual é a sua?

    - Laranja.

    - É mesmo?

    - É.

    - E o que você mais gosta que é laranja?

    - Laranjas.

   A resposta arrancou risadinhas dos outros. Embora ela mesma tentasse claramente segurar um sorriso.

    - Muito justo.

   - Ela tem 3 e meio. Dá pra acreditar? - disse Bernie enquanto Susie corria para sua cadeirinha e sentava sem a ajuda da família.

  Todos já se serviam de chá. Anna passava manteiga numa fatia de pão encarando-me discretamente. Susie estendia para sua mãe uma caneca de plástico esperando receber leite morno.

    - O que o senhor faz, Sr. Wood? - enunciou Draven. Seu olhar austero inspirava respeito.

  - Não estou trabalhando no momento. Mas por muito tempo dei aulas de psicologia em Cambridge.

    - Oh! Draven estudou em Cambridge - disse Serina.

    - Sim, Bernie falou-me. A propósito, Sr. Condry, o senhor teve aulas com o Professor Nerren?

   - Richard Nerren? - disse Draven. - Sim, tive aulas com ele. Foi meu professor de psicologia. Conhece ele?

    - Sim, conheci.

    - Conheceu?

    - Trabalhávamos juntos. Um grande visionário, o Richard. É uma pena que tenha falecido.

    Draven parou o garfo com bolo a meio caminho da boca.

    - Falecido? - disse ele, franzindo o cenho.

    - Sim, ele... Ele faleceu.

    Draven abaixou o garfo e pousou-o no prato. Abriu um leve sorriso.

    - Ele morreu... - disse ele.

    - Sim.

    Ele alargou o sorriso. Parecia confuso.

    - Mas como?

   - Oh, foi câncer. Câncer no cérebro. - Fiz um muxoxo. - Perdão, talvez este não seja o melhor assunto para tratar-se à mesa...

    Ele não pôde mais englobar-se e soltou uma gargalhada. Esta foi seguida por outras que soavam como se ele tivesse ouvido a piada do ano. Bernie não sabia para onde olhar; Susie olhava para o pai com desdém; Anna continuava comendo como se estivesse sozinha e Serina ficava cada vez mais corada.

    - Eu não sabia que o Professor Nerren havia falecido, Sr. Wood - disse Draven. Estava mais calmo, mas ainda sorria nervosamente.

      - Eu peço desculpas, Sr. Condry; pensei que soubesse.

     - Perdoe minha reação, mas é comum de minha parte quando recebo más notícias. Não sei por que me sinto assim. Gosto de pensar que costumo fugir da normalidade. Nada que possa ser explicado por Freud, garanto - disse ele graciosamente.

     Todos rimos do comentário.

     - Mas digam-nos! - disse Serina enquanto servia café para si mesma. - Quando será o grande dia?

     - Será no verão - disse Bernie em meio a um orgulhoso sorriso. - Jimmy e eu estamos muito ansiosos por isso, não estamos, querido?

      Virei o rosto para ela e olhei-a nos olhos como um gato perturbado por um filhote de cachorro.

      - Estamos - disse. Voltei a olhar para o casal Condry e sorri. - Espero que seja um dia realmente maravilhoso.

     - Você é maravilhoso, querido. - Ela entrelaçou seus dedos nos meus e deitou a cabeça sobre minha espalda.

     - Com certeza será - disse Serina sorrindo ingenuamente. - Bem, tenho de lavar a louça agora. Por favor, fiquem à vontade.

     - Oh, deixe-me ajudá-la - disse Bernie. As duas levantaram e começaram a recolher a louça da mesa.

   Eu e Draven ficamos conversando sobre psicologia e sobre Cambridge. Ele possuía um vocabulário realmente rico sobre sua graduação. Tentei acompanhar seu raciocínio com o pouco que havia lido. Ele pareceu acreditar que eu realmente havia lecionado em uma universidade mesmo isso sendo mentira.

     Embora Draven fosse um homem inteligente eu notei que havia sinais de excentricidade bastante notáveis em seu modo de agir.

        Em certo momento ele interrompeu seu raciocínio para lembrar à esposa que não esquecesse de desligar o cilindro de gás junto ao fogão. Após isso explicou-me que com crianças em casa todo cuidado era pouco. Alguns minutos mais tarde - mesmo após a confirmação da mulher - perguntou-lhe se o cilindro havia sido desligado... e fez a pergunta pela segunda vez vinte minutos depois.

       Uma hora mais tarde as mulheres já estavam na sala - e não havia mais ninguém para ouvir-nos na cozinha. Eu e Draven passamos a conversar sobre sua vida doméstica. Contou-me como conheceu Serina. Não foi muito detalhista mas concentrou-se em como sentia-se na época. Também inventei uma história sobre Bernie.

      - Então você percebeu que Bernie andava muito tempo sozinha - ele disse acendendo um cigarro marrom cuja marca eu não conhecia.

       - Não, foi Rosie quem chamou minha atenção - disse eu com um dos meus cigarros nos dedos.

       - Mesmo assim, eu respeitaria suas intenções e vontade de agir.

      - É mesmo? Bem, daquela vez eu usei minha dificuldade em falar com ela como um pretexto e, como resultado, Bernie virou a isca.

      - Isca, Sr. Wood? É um termo interessante... Era esse o motivo do senhor para se aproximar do maior número de mulheres na época?

     - Sim. Eu queria preencher o vazio em meu coração... e nos delas. Acho que gosto de fugir da normalidade.

     Nesse ponto ele olhou para mim ligeiramente espantado. Foi quando percebi que havia acabado de falar o que ele tinha dito minutos antes. Agora o interesse dele por mim parecia crescer - embora eu nem mesmo entendesse direito a razão. Ele abaixou os olhos distraidamente e tragou seu cigarro.

   - Temos muita coisa em comum, Sr. Wood. - Ele falava de modo bem vagaroso. - Essa é exatamente a minha filosofia de vida. Não gosto de ser impedido de fugir da normalidade adotada pelo mundo. Eu queria ter dito isso no discurso de formatura, sendo que fui escolhido para fazê-lo. Parece que o senhor se arrepende de usar Bernie de isca, mas não precisa sentir-se culpado ou com vergonha... Substancialmente, boas intenções e más intenções são a mesma coisa. Ambas são execuções que as pessoas usam para compensar uma incorreção dentro delas.

     Aquela era uma ideia absurda para mim.

   - Recentemente, - continuou ele, olhando com o olhar vago e absorto - venho tentando me aproximar de uma pessoa, e já tentei de todas as formas possíveis. Às vezes sou direto. Às vezes vou pelas beiradas. Às vezes faço coisas que as pessoas consideram estranhas. É bem divertido.

     Abri a boca.

     - O senhor... fala de uma amante?

    Ele riu simpaticamente.

    - Absolutamente não. Claro, é parecido com uma situação amorosa - respondeu.

    Ficamos em silêncio por quase um minuto.

    - Eu penso... que preencher o vazio no coração seja o mais importante - ele disse antes de tragar mais uma vez seu cigarro.

    Inclinei a cabeça. Pude ver que Anna estava sentada junto à porta da cozinha com sua irmã no colo. Olhava melancolicamente para mim. Como se pedisse por socorro.


Bellinzona, 3 de março de 1959.


    Eu e os dois avôs de Susie dirigíamo-nos a um enorme cassino no topo de uma montanha nos arredores de Bellinzona. Bundy dissera que devia bastante dinheiro a uma pessoa - dinheiro que havia perdido no Nozari Casino. Sua dívida totalizava em 6 mil francos - a quantia certa que lhe fora roubada na ocasião do assassinato da menina. Mas seriam o ladrão e o assassino a mesma pessoa? Eu precisava descobrir isso para Piers se quisesse manter minha reputação. Bundy havia lido a matéria do Gazzetta na íntegra para nós. Nada além do que já sabíamos. A meu ver Piers era o único que estava interessado em descobrir a verdade. Bundy não aparentava dar a mínima. Entretanto eu não duvidava que Bundy estivesse ansioso para saber o que Piers faria com o assassino quando deitasse a mão nele. Honestamente eu não ligava se Piers quisesse se vingar ou não.

    Eram 21h00 quando saímos do teleférico e dirigimo-nos à entrada. O Nozari Casino tinha esse nome por causa de Alberto Nozari - um filantropo suíço que fizera sua fortuna seduzindo mulheres abastadas. O lugar era grande como um castelo. Era equipado com um sistema de aquecimento que o deixava aconchegante apesar do frio lá fora. Todos os três usávamos smoking; nossos rostos estavam lisos como o de uma garota e os cabelos bem penteados. Enquanto adentrávamos no hall e caminhávamos em direção ao salão principal a pancadaria aumentava seu volume. Era jazz. Um grupo de cavalheiros negros tocava em um jirau. A bateria era tocada rudemente enquanto o povo espalhava-se pelo salão como formigas num pote sujo de mel. As mulheres estavam todas vestidas elegantemente - com roupas dos mais variados tipos e cores.

     - Qual é mesmo o nome da dama estamos procurando? - perguntei a Bundy.

     - Pergunte pela Signorina Benziger. Ela faz apresentações no palco... Mas é bem acessível. Adora dinheiro, mais do que qualquer outra coisa. Sempre vem aqui. O senhor encontrá-la-á.

        - Está bem.

        - Está bem? Boa sorte - Bundy começou a afastar-se.

        - Opa! - disse Piers segurando-o- pelo braço. - Aonde pensa que está indo?

        - Pegar um drinque.

        - Não mesmo, parceiro. Precisamos que você fique conosco.

        - O quê?

        - Ele tem razão, Sr. Bundy - disse eu. - Precisamos que identifique a suspeita. Além disso... eu e o Sr. Condry não falamos italiano muito bem. Então fique por perto.

     - Se desejam que eu identifique a suspeita, basta olharem para o palco - disse Bundy contrariado.

        Obedeci. As luzes de todo o salão foram então diminuídas e o palco ficou iluminado somente por um holofote. Este estava centrado em uma mulher de aparência pecaminosa. Começou a cantar um jazz em italiano e foi acompanhada pela banda logo atrás. Nesse momento meu coração acelerou. Não havia dúvidas. Era ela. Era Bernie. Bernie Engelmann. Estava bem diferente desde a última vez que a havia visto. Seu cabelo estava ruivo e preso atrás num coque meio desleixado, mas sensual. E uma mecha caía sobre o olho direito. Até a cor de seus olhos havia mudado. Agora eram castanho-avermelhados. Vestia uma camisa branca com as mangas arregaçadas quase até os cotovelos e calças largas e curtas com suspensórios e salto alto. Uma corrente dourada presa e sua cintura sugeria que ela levava um relógio no bolso. A apresentação de Bernie foi considerada suficientemente importante para que muitas pessoas deixassem suas mesas de jogo e viessem para o salão mais grandioso do cassino.

         - Pensando bem - disse eu sem desviar os olhos de Bernie - podem ir tomar um drinque. Tenho tudo sob controle.

            - O quê? - disse Piers espantado enquanto Bundy acendia um cigarro.

           - Também tenho uns assuntos inacabados com aquela mulher. - Pus 10 francos no bolso do casaco de Piers e dei um tapinha em seu ombro. - Relaxe. Vá pegar um drinque.

           Enquanto Bundy virava as costas e afastava-se com as mãos nos bolsos Piers acompanhava-o confuso. À medida que ambos se aproximavam do bar Piers virava o rosto para mim de cinco em cinco segundos.

                    Bernie era uma ladra. Nascera uma ladra e morreria uma ladra e geralmente não tinha dificuldades em conseguir o que queria. Mas matar uma criança não é uma coisa que ela faria sem um motivo extremamente forte. Ela e Susie conheciam-se. Mas seria esta uma boa razão para matá-la?

                 Quando Bernie terminou seu número a plateia aplaudiu-a. Mas nada além disso. Ela desceu do palco pela lateral e trancou-se no banheiro contíguo. Saiu de lá com outro visual - cabelo solto e uma jaqueta de couro de um amarelo acinzentado com uma saia preta e meia calça. Os sapatos eram os mesmos. Caminhou por alguns minutos pelo salão até que decidiu dirigir-se para fora. Debruçou-se na amurada de concreto. A vista dava para uma bela paisagem montanhosa e uma pequena floresta alguns metros abaixo. O clima não estava congelante. Mas logo ficaria. Isso dava-nos pouco tempo para aproveitar o ambiente fresco da noite. Pôs um cigarro na boca e tentou acendê-lo com um isqueiro que estava falhando. Um leve ruído deve tê-la advertido de minha presença. De fato, eu avistava-a de costas para mim. Mas ela não se moveu. Conseguiu finalmente acender seu cigarro e suspirou logo depois - soltando uma enorme quantidade de fumaça que subiu e espalhou-se no ar. Isso foi mais marcante para mim do que o Big Smoke.

               - Posso sentir o seu cheiro a quilômetros de distância - ela disse. Então virou-se segurando o cigarro fumegante perto do rosto. - É um cheiro muito bom.

                       Puxei um cigarro do bolso e acendi-o.

                       - Estou curiosa para saber o que quer comigo - continuou ela.

                       - Não consegue adivinhar? - disse eu. Soprei minha fumaça na direção dela.

                  Ela soltou uma risota.

                  - Não sou vidente, Clint.

                  - Desmond Bundy.

                  - O que tem ele?

                  - Você retirou 6 mil francos do cofre dele.

                  - Sim.

                  - Susie Condry foi morta no mesmo dia. No mesmo lugar.

                  - Susie Condry foi morta. É só o que vale.

                  - O que sabe sobre isso?

                  Ela deu de ombros. Tragou seu cigarro sem pressa.

                  - Nada. - Ela soltava a fumava enquanto falava. - Apenas o que li no Gazzetta.

                 Fiquei na dúvida se valeria a pena questioná-la; ela não parecia estar mentindo. Contudo eu dificilmente teria outra chance de interrogar Bernie antes que ela sumisse completamente.

                  - Se você não matou Susie... quem acha que poderia ter matado?

            Ela olhou para baixo e ficou assim por um momento. Parecia não ter escutado a pergunta. Depois sorriu melancolicamente.

              - Aquela diabinha... - disse. - Sempre um passo à frente do mundo.

              - O que quer dizer com isso? Sabe que matou a menina?

            - Está ficando frio aqui, neste cassino. Vamos continuar esta conversa em um lugar mais aconchegante.

               - Vai me obrigar a isso para me revelar o que carrega em sua consciência?

               - Sou uma vadia egoísta, Clint. Nunca esqueça disso.

       Descemos da montanha e tomamos a locomotiva para o subúrbio. Cumprimentei o recepcionista do Unione. Disse que minha esposa acabava de chegar de Londres e que gostaria de alugar uma suíte de casal.

              Pegamos o elevador e entramos no quarto 813. Este era duas vezes maior do que o 512 - o quarto que eu estava dividindo com Piers. Era inteiramente acarpetado e composto apenas por uma enorme sala e um banheiro pequeno. Perto da sacada havia uma mesa em forma de hexágono com duas cadeiras sob uma luminária de teto e um frigobar com dois copos em cima. À nossa esquerda estava o guarda-roupa e uma mesinha redonda alta e estreita que servia de apoio para um vaso com algumas orquídeas. À nossa direita - ao fundo do cômodo - uma lareira e uma cama king size com uma cabeceira entalhada à mão estavam frente a frente. Dirigi-me para lá. Havia um criado-mudo e uma alfombra de cada lado da cama. Tirei o capote e o chapéu e joguei-os sobre ela. Também desfiz o nó da gravata. A primeira coisa que Bernie fez foi abrir a cortina da sacada para que o luar entrasse e clareasse todo o cômodo. Depois tirou seu capote e seu beret e estendeu-os num canto do chão junto às portas de vidro da sacada.

            - Uuh! Veja! - Retirou uma garrafa de champanhe de um balde com gelo em cima da mesinha. - Cortesia da casa!

                 Fui até ela. Estendeu-me a garrafa.

                 - Tome. É você quem sabe abrir uma dessas.

            Fiquei olhando para ela. Ela estava me provocando. Queria me ver com raiva. Peguei a garrafa da mão dela e comecei a remover o lacre para abri-la. Bernie caminhava para trás de mim.

            - Sabe... - disse. - Eu sempre tive inveja da Susie. Ela consegue mais atenção sua com aquela carinha de anjo do que eu com meu corpo inteiro.

            Senti um calorão pelo corpo e ouvia minha própria respiração. Por que deixava-me provocar? E por que ela estava fazendo aquilo?

                   - Digo, eu não esperava ser trocada por outra mulher - continuou ela. - Muito menos por uma anã de jardim de calças plásticas.

          Ela tirou a jaqueta de couro e jogou-a sobre a cadeira. Então entrou no banheiro e encostou a porta. Ouvi ela ligando a torneira da banheira.

       - Mas tudo bem - ela gritou do banheiro. - Agora que a rapariga empacotou, acredito que possamos ficar juntos, certo?

        Minhas mãos estavam trêmulas e eu não conseguia tirar a rolha da garrafa. Então segurei-a pelo gargalo e espatifei-a na borda da mesa com o mesmo som e intensidade de um disparo de 44. Virei a quantidade de champanhe que restava na garrafa em uma taça e fui até o banheiro. Ela estava nua dentro da banheira. Estava com água até o pescoço. Seu cabelo estava úmido por causa do vapor e preso num coque. Piscou os olhos repetidamente com uma expressão romântica.

          - Vai me dar o champanhe? - disse.

         Levei a taça aos lábios e bebi tudo de uma vez. Coloquei-a na pia. Aproximei-me da banheira e fiquei ao lado de Bernie. Fiquei quieto. Ela me olhava de baixo com o cenho franzido.

         - Uma pena que tenha morrido tão rápido, a vagabundinha...

     Empurrei sua cabeça para baixo. Ela escorregou de costas e afundou por completo. Ficou debatendo-se e golpeando desajeitadamente a água com as mãos e com os pés. Ergui o braço e puxei-a de volta. Ela estava ofegando.

        - Suponho que tenha visto como Susie morreu? - falei calmamente.

        - Claro como o dia - ela disse segurando meu braço com as mãos.

        - E então?

        - Acho que foi muito rápido. Mas você teria se orgulhado dela. Ela permaneceu calma até o fim. Ah, ah! Cadelinha...

        Abaixei a cabeça dela novamente. Ela segurou no meu braço com mais força. Esperei alguns segundos enquanto ela debatia-se com cada vez mais violência. Puxei-a novamente e ouvi-a tomar um enorme fôlego. Arrastei-a para fora da banheira. Ela tossia. Eu sentia os cabelos molhados dela entre meus dedos e suas mãos no meu pulso. Ela virava-se de costas para o chão à medida que eu a arrastava à sala acarpetada e logo conseguiu pôr-se de pé. Puxou meu braço com força para trás. Perdi o equilíbrio e caí de costas soltando então seu cabelo. Ela preparou-se para correr, mas eu agarrei e puxei seu tornozelo fazendo-a tombar de bruços. Comecei a puxá-la com apenas uma mão enquanto tentava levantar-me. De repente ela virou-se e espetou minha mão com um caco da garrafa que eu quebrara. Isso fez-me largá-la. Ela começou a correr, mas eu fui rápido em erguer-me. Puxei seu cabelo e abracei-a por trás. Ela então bateu com a cabeça na minha testa antes de virar-se para mim e tentar me chutar no estômago. Segurei a perna dela. Mas ela deu-me um empurrão e eu caí de costas. Ela caiu montada em cima com as mãos no meu pescoço.

         - Seu desgraçado! - rosnava.

        Ela tinha vigor, mas não era muito forte. Mesmo assim estava me sufocando. Dei um tapa em seu rosto. Não adiantou muita coisa. Tentei levantar-me e ela desequilibrou-se caiu para o lado. Rolamos pelo chão até a mesinha redonda, derrubando o vaso com as orquídeas. Terminei em cima de Bernie, segurando seus braços contra o chão; minhas roupas molhadas por causa de seu corpo. Ela ofegava exausta com os braços caídos no carpete. Eu fiquei ali - a mão sangrando - sem saber o que fazer. Tentava desacelerar meus batimentos cardíacos.

         - E agora, Clint? - ela sussurrou sem fôlego.

        Respirei fundo e levantei.

    Fui até o frigobar e peguei uma garrafa de uma bebida qualquer e um copo. Servi uma quantidade mínima e bebi num gole. Isso apagou os últimos 10 minutos da minha consciência. Dirigi-me à cama enquanto Bernie sentava-se no chão. Pus meu chapéu. Peguei meu casaco e fiquei com ele nas mãos.

       - Clint? Aonde vai?

      Fui até a porta e abri-a.

      - Espere! - disse Bernie.

     Parei. Fiquei parado sem olhar para trás.

     - Não vá. Eu conto tudo que sei. Conto agora. Só... não vá.

   Fechei a porta lentamente. Ela foi até a mesa e pegou a garrafa que eu havia aberto. Serviu a bebida em dois copos. Puxou a cadeira da direita.

    - Por favor - disse. Olhava para mim com a testa franzida e um olhar sincero. - Sente-se.

    Então ela puxou a cadeira da esquerda e sentou-se cruzando as pernas. Também sentei. Ela ainda estava encharcada e seu cabelo ainda gotejava. Estava jogado para trás e isso deixava sua testa larga à mostra. Olhei em seus olhos e não me incomodei a ponto de sugerir que ela se enxugasse e vestisse alguma coisa. Por mim tudo bem se ela pegasse pneumonia.

      - Deixe ver sua mão - ela disse.

      - Desembucha.

      - OK... Você certamente leu a edição do Gazzetta do dia primeiro.

      - Leram para mim. Não falo italiano.

      - Então sabe que perto do corpo da menina fora encontrada uma caixinha de música.

      - Caixa de música? - falei. - Que caixa de música?

     Ela olhou para seu capote - o que estava no chão ao lado de seu assento - e juntou-o. Tirou dele uma pequena caixa de madeira de 5 centímetros cúbicos com uma tampa e uma manivela metálica acoplada. Ela pôs a caixa sobre a mesa. Olhei para Bernie ela devolveu-me o mesmo olhar aflito. E eu já não sabia mais se ela estava falando sério ou tirando-me para otário.

     - Abra-a - ela disse.

    Levantei a tampa e esta abriu-se como a cobertura de um piano. Na parte interior dela havia uma impressão de uma pintura renascentista de uma mulher lavando roupa. Puxei meu chapéu para trás da cabeça. Era uma imagem do século XVI cujo nome e autor eu ignorava. Mas Bernie com certeza conhecia. No centro da caixa tinha uma escultura de cobre colada sobre uma base circular de plástico e pintada de marrom de modo desleixado. Era um anjo desses de cemitério - com olhar sombrio - sentado com a coxa esquerda sobre o tornozelo direito e segurando um pano que cobria seu sexo. O cilindro da caixa estava naturalmente posicionado de forma horizontal à frente da base circular.

    - Gire a manivela - disse Bernie.

   Comecei a girar. Com isso o cilindro também girava. Iniciava-se uma das sinfonias de Bach. Não lembro o nome da sinfonia.

   - E agora?

   - Continue girando, até que dê uma volta completa.

 Obedeci. Quando o cilindro deu uma volta completa a manivela travou e um pino de meio centímetro de diâmetro saltou da base de plástico e estava agora em relevo. Havia um pequeno orifício no centro deste.

 Voltei a olhar para Bernie. Ela olhava para mim orgulhosa com o queixo nas mãos. Não conseguiu disfarçar um sorriso no canto da boca.

 - Está dizendo que um mecanismo tão pequeno seria capaz de...

 - É você quem está dizendo, Clint.

 - Mas a bala permeou o crânio de Susie. Atravessou o teto.

 - Não se deixe enganar pela aparência deste brinquedo. É uma arma pequena, mas extremamente poderosa. Não vejo um destes há anos. A bala é afiada e extremamente veloz, atingindo mais de 400 milhas por hora.

 - Isto estava ao lado do corpo de Susie? Essa informação não está no jornal.

 - Sim, está.

 - Não está.

 - Sim, está. Pergunte a algum cidadão local. Alguém que não seja da polícia. Alguém que não esteja envolvido no caso.

 Preguiçosamente ela voltou a meter a mão no bolso do capote no chão. Riscou um fósforo na parte de trás dos incisivos num gesto elegante e aproximou um cigarro da chama. Deu uma boa tragada e soltou a fumaça num suspiro. Afastou o cigarro da boca e coçou a testa com o mindinho.

 - Teria sido mais fácil para todo mundo se você tivesse deixado a caixinha no lugar - falei.

 - Eu deixei. - Ela desviou o olhar pensativa. - Esta é outra. Mas eu devia ter levado aquela como um presente. Agora eu teria um souvenir da pequena. A vida é feita de souvenires, Clint.

 - Que papo-furado.

 Ela riu.

 - Eu amo você, Clint.

 - E eu com isso?

 - Por que está levantando?

 - Eu vou sair.

 - O quê?

 - Tchau.

 - Está falando sério? Aonde vai?

 - Não é da sua conta.

 - Não! Mas...

 Vesti o capote e ajeitei o chapéu. Ouvi Bernie levantando-se. Abri a porta e fechei-a assim que saí. Tudo o que ouvi depois disso foi o grito esganiçado de Bernie:

 - Seu cretino!

 No dia seguinte almocei com Piers em Lugano. Quando me questionou sobre o caso enrolei-o o máximo que pude. Como ele insistisse contei um resumo do que ocorrera na noite passada e disse que precisávamos falar com mais uma pessoa. Pedi que levasse o jornal do dia primeiro.

 Na casa vizinha à de Bundy morava um velho nativo. Alguma coisa Rodelli. Tinha uns vinte anos a mais do que eu. Era muito calvo. Tinha cabelo branco e olhos azuis. E um rosto enrugado. Usava uma bengala e pantufas. Também paletó de lã e uma gravata borboleta. Identifiquei-me como detetive e eu disse que gostaria de fazer-lhe uma ou duas perguntas sobre o caso de Susie Condry. Disse também que o avô paterno dela estava comigo. Ele mostrou-se levemente interessado e convidou-nos a entrar. A casa possuía uma estrutura idêntica à de Bundy e o interior também não era diferente. No entanto a sala-de-estar de Rodelli parecia bem inferior por estar lotada de móveis - sendo todos eles quase tão velhos quanto seu dono. Eram uma cômoda e uma escrivaninha de madeira e entalhadas à mão na esquerda e uma mesa com quatro lugares no centro. Havia uma cadeira ou um banquinho em cada um dos quatro cantos do cômodo e papel em todas as paredes. A casa tinha uma decoração diversificada. Isso incluía réplicas baratas de pinturas do Van Gogh e porta-retratos. Havia pequenas esculturas de gesso sobre os móveis e um pinheiro velho de natal sem decoração perto da lareira acesa.

 Após uma xícara de chá e uma conversa amigável e maçante sobre os anos dourados eu tomei a iniciativa de interrogar o velhote sobre o incidente do dia 28.

 - Sim, eu conhecia a pequena Susie - ele disse. - Quantos anos ela tinha? Quatro, cinco?

 - Seis - disse Piers.

 - É. - Rodelli meteu lentamente a mão no bolso do casaco e tirou de lá um cachimbo e um saquinho de papel. - Via-a de vez em quando. Era uma menina encantadora, mas... anormal. - Ele pôs o saquinho na mesa ao lado da xícara vazia e desamarrou a cordinha que envolvia a borda do saquinho. Pôs-se a introduzir pitadas de pó no cachimbo.

 - Como assim, anormal? - disse Piers impaciente.

 - Ela era muito magra e... quieta... Como se estivesse... Como se... se estivesse escondendo alguma coisa. Um dia ela veio até aqui às sete e meia da manhã. Tocou a campainha e eu atendi. Ela disse: "Bom dia, senhor. O senhor deve ser o Sr. Rodelli. Eu sou Susie. Susie Condry. Sou neta do Sr. Bundy. O Sr. Bundy pede meia dúzia de ovos, por favor?

 Rodelli contou-nos que sentiu pena dela. Pois fazia frio e a garotinha tremia em um casaquinho de lã.

 - Oh, é claro, minha querida - disse ele à menina. - Mas por favor, entre!

 - Não acho que seja uma boa ideia; - disse ela - o Sr. Bundy aguarda-me.

 Ela era tão frágil... tão educada... E suas olheiras ficaram ainda mais evidentes quando ela abriu bem os olhos e tentou forçar um sorriso.

 - Além do mais, - a menina continuou - eu não quero incomodar o senhor.

 - Bobagem! Vamos entrar! Rápido, rápido! Está frio aí fora! Você vai congelar seu bumbum.

 Então a garota riu. Riu de forma natural; não foi só por pedagogia. Ela riu como se fosse a primeira vez depois de muitos anos. Pude ver Susie claramente durante a narrativa de Rodelli. Ela entrou pela porta e dirigiu-se a ele. Rodelli serviu-lhe chá. E biscoitos também. Susie ficou olhando aquilo atentamente; até lhe escorrer lágrimas dos olhos.

 - Espero que goste de... Ei! O que foi, querida?

 Rodelli abaixou-se ao lado da menina. Susie esfregou os olhos com as costas das mãos com o rosto vermelho e um beiço enorme.

 - Nada, é que... É que eu não bebo chá há muito tempo. E nem como biscoitos...

 - Seu avô não gosta de biscoitos?

 - Não sei.

 - Onde estão seus pais, meu amor?

 - Minha mãe foi para o céu e meu pai está em Londres.

 - Londres?

 Susie assentiu com a cabeça.

 - Ele está internado em Wimbledon.

 Rodelli mudou a expressão de seu rosto.

 - Wimbledon? Mas... Mas por que ele...

 - Sr. Rodelli? - disse Susie de um modo nada infantil. - Eu realmente preciso ir, agora.

 Rodelli estava confuso. Até esquecera os ovos. Não sabia o que fazer. Então abriu a porta e deixou a menina sair. Viu-a mais algumas vezes, mas ela apenas cumprimentava-o de longe. Ele ouvia ocasionalmente o piano. Era quase sempre Mozart. Requiem. Sempre que uma música não era tocada muito corretamente ele presumia que era a jovenzinha. Mas às vezes era Bundy quem tocava. Ele costumava acelerar a sinfonia e não se enganava em uma nota sequer. Ele normalmente tocava à noite e Susie ao meio-dia. Um prodígio de menina. Na opinião de Rodelli ninguém teria razão para matar uma moça tão doce.

 - O que acha que aconteceu? - falei. Segurava meu bloco e lápis, mas não escrevia nada.

 Rodelli tragava seu cachimbo com o olhar vago. Não respondeu. Respirou fundo e soltou uma baforada.

 - E então, Rodelli? - disse Piers. - Quem acha que matou minha neta? Quem é o vilão? É Bundy?

 Rodelli olhou para baixo e franziu a testa como se guardasse um segredo sombrio e terrível.

 Ele finalmente olhou Piers nos olhos. Aquele olhar passava uma ideia de paciência e sabedoria. Mas o que ele disse em seguida tirou toda a segurança que restava em Piers.

 - Meu caro signor, o vilão não é Bundy. É Susie.

 Piers abriu mais os olhos. Estes umedeceram-se e ficaram levemente avermelhados.

 - O que quer dizer? - murmurou.

 Rodelli fechou os olhos e respirou fundo.

 - Não sou detetive da polícia, como vocês, mas... dadas as circunstâncias... considerando que Bundy não estava em casa quando aconteceu...... - ele deu mais uma tragada - não posso chegar a nenhuma conclusão, exceto... - ele tragou a fumaça de seu cachimbo uma terceira vez e soltou uma espessa e malcheirosa nuvem branca - suicídio.

 Piers levantou-se bruscamente. Olhava seriamente para Rodelli com a respiração ficando cada vez mais tensa.

 - Você vai retirar isso, velho - ele disse com os lábios trêmulos.

 - Sr. Condry, sente-se - falei. Mas acho que ele não ouviu.

 - Está dizendo que um bebê de seis anos pôs o cano de uma arma na boca e apertou o gatilho? - gritou Piers com o rosto vermelho. - É isso, Rodelli? Hein? Desgraçado.

 - Foi no nariz - corrigi.

 Rodelli estava um pouco intrigado, mas não parecia ter nenhum medo de Piers.

 - Ela era obviamente infeliz - continuou. - Uma órfã. Eu no lugar dela teria estourado os tutanos há muito mais tempo.

 - Quer ver eu estourar os seus tutanos, Rodelli?

 Ele meteu a mão trêmula dentro do paletó. Eu levantei e segurei seu pulso com força.

 - Sr. Condry - falei baixinho. - O senhor precisa acalmar-se. Não estrague tudo.

 - Tire suas mãos de mim, Harper.

 - Não foi minha intenção irritá-lo - disse Rodelli. - Há algo que eu possa fazer?

 - Por que diabos chamou a menina de suicida, Rodelli? Hum? Por que acusou Susie? Está tentando livrar a cara?! Hein?! Onde você estava naquela noite?! Hein?! O que estava fazendo?! Hein?!

 Ele estava ficando mais agitado. Tirei a mão dele para fora do casaco e o revólver saiu junto; ele segurava-o pela coronha. Arranquei-o de sua mão e dei-lhe uma bofetada no rosto. Ele grunhiu. Segurei-o pelos braços e chacoalhei-o.

 - Contenha-se!

 Ele enfim desvencilhou-se de minhas mãos. Voltou a sentar-se da mesma maneira brusca com que levantara. Respirava com dificuldade. Olhava para o chão. Acendeu um cigarro.

 - Vai... Vai dizer-nos o que fazia quando Susie morreu, velho? Hum? - ofegou Piers.

    Rodelli olhou para o cachimbo.

    - Não tenho porque eliminar nenhum fato. Sim, eu estive na casa de Susie na noite do dia 28.

    - O quê? O que disse, Rodelli?

    - Sr. Condry - falei. - O Sr. Rodelli está sendo muito paciente conosco. Se não se conter...

    - Cala a boca, Harper! Deixe o velhote desembuchar.

  Rodelli olhou Piers como se este houvesse xingado sua mãe. Depois voltou a olhar para o cachimbo em sua mão como se examinasse-o.

   - Ouvi um barulho peculiar. Nunca havia ouvido coisa parecida antes. Não parecia um som de tiro. Acho... Acho que era o som da bala penetrando no teto. No início não reagi, mas então ouvi a porta da frente da casa de Bundy sendo aberta abruptamente e alguém saiu por ela. Pude ouvir os passos na neve. Peguei então minha bengala, meu boné e fui até lá. As pegadas no gramado não eram grandes demais para serem femininas. Nem muito pequenas para serem de varão. Logo desapareceriam; estava nevando, veja. Tratei de chamar por Bundy, mas não obtive resposta. Chamei por Susie, mas o resultado foi o mesmo. Então tirei os sapatos e entrei na casa. Vi a garotinha morta, no andar de cima. Seu vestido estava rasgado. Havia sangue em seu rosto, agora deformado. E nos cabelos. E... no teto. Havia um buraco de bala nele, mas... Não havia nenhuma arma perto dela. Exceto... a tal caixa, é claro. Eu não encostei em nada. Apenas abaixei-me para fechar os olhos da criança. A bala não penetrara no nariz, e sim um pouco abaixo, entre o lábio de cima e o nariz. Mas o lábio de cima fora arrancado pelo projétil. Seus dentes estavam à mostra, como os de um cadáver podre. Não fiquei olhando para ela por muito tempo, mas aquela é uma cena que levarei em minha mente para sempre.

   Ele levou os lábios ao cachimbo mais uma vez até Piers levantar a voz novamente.

   - Que caixa é essa? Isso não está no Gazzetta.

  Olhei para o velho. Ele soprou calmamente uma enorme quantidade de fumaça de uma vez. Não respondeu.

  - Harper? - disse Piers nervosamente.

 Meti a mão no bolso interno do casaco e retirei de lá o número do dia primeiro do Gazzetta.

 - Sr. Rodelli - falei. Abri o jornal na matéria da primeira página. A que tinha a foto da menina cujo rosto ocupava quase todo o retrato. Ela tinha as bochechas macias, mas as olheiras davam-lhe um aspecto esquelético. Os cabelos lisos quase brancos estavam puxados para trás das orelhas largas. Tinha o olhar vazio e pupilas assustadoramente claras. E sobrancelhas quase invisíveis. Ela não olhava para a câmera. Olhava para cima. Provavelmente para o fotógrafo. - Seria demasiado enfadonho para o senhor se traduzisse o texto para nós?

 Entreguei a edição a Rodelli, que aceitou de bom grado e começou a traduzir a manchete. No entanto Piers disse que era perda de tempo porque Bundy já nos havia traduzido o artigo inteiro. Então eu disse a ele que a investigação seria feita do meu jeito. Ele aceitou, contrariado.

 Rodelli começou a traduzir o texto. Leu tudo em inglês sem muita dificuldade. Exatamente como Bundy fizera.

 Quando pensei que ele havia ultimado puxei o ar para começar a falar. Mas antes que eu o fizesse ele continuou:

 - "Os detetives não encontraram nenhuma arma na casa, e não havia nada perto da vítima que pudesse ser usado como arma, nem nada que indicasse suicídio. Havia, entretanto, uma caixa de música perto da mão esquerda da menina. Tal objeto antigo pertencia ao avô de Susie, o Sr. Desmond Bundy, e não possui enorme importância para o caso."


Londres, 4 de janeiro de 1956.


    No dia seguinte ao da minha visita aos Condry lembrei que Serina havia enunciado que iria fazer compras no Tesco às 18h00. Pensei que seria uma oportunidade perfeita para visitar a residência e fazer uma investigação mais minuciosa.

   Bernie havia puxado a cama embutida na parede e estava dormindo nela agora. Ressonava intensamente. Estava adorável de camiseta branca. Peguei a chave de seu Fiat 500 de cima da escrivaninha.

     Saí de Tottenham e dirigi até Walthamstow.

    Estacionei o carro na frente da casa. Eram 18h30 exatamente. O Tesco mais próximo ficava bem longe dali. Por isso presumi que Serina Condry ainda demoraria a voltar. Toquei a campainha. Anna abriu a porta.

    Usava um vestido vermelho de bolinhas e o cabelo estava preso com um lenço.

    - Sr. Wood?

    - Olá - falei. - Como vai?

    - Bem... - Pareceu ligeiramente surpresa em ver-me. - Estou limpando a cozinha. O que o senhor deseja?

    - Seu pai ou sua mãe está? Gostaria de tratar com eles um assunto importante - falei sentindo uma brisa gelada bater em meu rosto. Forcei uma expressão exagerada de desconforto.

    - Bem, meu pai está trabalhando... E minha mãe foi fazer compras. Deve demorar quase uma hora para voltar.

     - Entendo... Isso é uma pena... Bem, então acho melhor eu voltar outro dia.

     - Entre por um momento. Pode esperar aqui, se quiser. Talvez minha mãe não demore tanto.

     - Está bem, então. Acho que vou esperá-la.

    Tirei o chapéu e entrei. As janelas estavam todas fechadas e toda a casa estava escura. Anna convidou-me a sentar na poltrona da sala-de-estar. Era uma poltrona roxa com capa de veludo e tinha um encosto bem alto.

    - Vou trazer-lhe uma bebida. - Ela subiu calmamente para o segundo andar. Talvez fosse no quarto de Draven que ele guardava o bourbon.

     Olhei em volta. Eu tinha quase certeza do que estava acontecendo naquela casa. Mas ainda não tinha nenhuma prova. Só havia um modo de comprovar minha teoria - espionagem. Obviamente se eu desse o mínimo sinal de que era detetive tudo iria por água abaixo. Olhei para o relógio no meu pulso. Levantei-me e comecei a andar pelo recinto observando a decoração. Era tudo bastante caro. Havia alguns porta-retratos sobre a lareira acesa. Algumas fotos retratavam Anna e outras Susie. Outras as duas juntas. Algumas eram de Serina. Mas Draven não aparecia em nenhuma.

    Foi quando escutei passos alguns metros atrás de mim. Eram passos leves de alguém que vinha correndo. Virei-me para ver. Susie deu um pulo e caiu de pé com as mãos na altura da cabeça em pose de predadora.

    - Achei você, Anna!

    Então ela abaixou os braços e olhou para os lados.

    - Não, não achei... - murmurou. - Cadê?

    - Oi, Susie - falei. Caminhei até ela e abaixei-me até ficar de cócoras. - O que está fazendo?

    Ela olhou para mim com uma seriedade inocente e engraçada.

    - Estou assustando Anna - sussurrou.

    - Está assustando Anna?

    - Sim. Se ela perguntar, você não me viu, OK?

    - OK...

    - Venha! - Pegou minha mão. - Vamos para o banheiro!

   Nesse momento ouvimos passos na escada. Susie correu para os fundos da casa e ergui-me. Anna apareceu com meia dose de uísque.

    - Aqui está, Sr. Wood.

    - Obrigado.

    - Sente-se.

    Obedeci e sentei na poltrona. Ela sentou no sofá ao lado.

    - Gosta de trabalhar com pessoas, Sr. Wood?

    - Sim, é por isso que escolhi minha profissão.

    - Psiquiatra?

    - Psicólogo.

    - Ah, sim. Qual a diferença?

    - Um psiquiatra cura o seu corpo. Um psicólogo cura sua alma.

    - E como faz isso?

    - Conversamos com você.

    - Sobre o quê?

    - Sobre o que você quiser.

    - Deve ser difícil desinibir as pessoas no início.

    Fiquei ligeiramente admirado com a facilidade de comunicação da moça.

   - Não muito. Só precisamos fazer as perguntas certas. Tenho certeza de que seu pai já lhe mostrou como trabalhamos.

     - Papai é um homem rude e desagradável.

    Ela dissera aquilo com mágoa na voz.

    - Por que diz isso?

    - Ele grita comigo e com Susie. E com a mamãe. Ele não é bom psicólogo.

    - Seria melhor se ele não existisse?

   Arrependi-me de ter feito a pergunta quando ela olhou para mim com certo espanto. Procurei mudar o assunto.

    - Gostaria de ser uma psicóloga quando crescer?

    - Eu não acho que vá viver tanto tempo assim.

    - Acha que morrerá jovem?

    - Temo que sim.

    - Por quê? - Aproximei a bebida dos lábios e simulei beber um gole.

    - Eu não sei. - Ela olhou para baixo. - Não consigo imaginar-me adulta.

    - Isso é curioso - falei.

   - Curioso? - Ela levantou o olhar para mim. A luminosidade da sala era fraca, mas eu conseguia ver os intuitivos olhos da garota - agora mais bonitos do que no dia anterior. Ela tinha lábios firmes. Eram lábios de uma garota introvertida... porém segura.

    - Você gosta de ir à escola?

    - Não muito... Minhas notas caíram recentemente.

    - Por quê?

    - É difícil para mim prestar atenção. Mas não mudaria nada no sistema de ensino. Acredito... que a escola é inútil no meu caso.

    - Hum-Hum. Continue.

   - Eu sinto que estou dissipando um tempo precioso. Gostaria de passá-lo em outro lugar, como num parque. Mamãe disse que o Hyde Park é um lugar maravilhoso.

    - Ela disse isso?

    - Sim. Já esteve lá?

    - Já. É um lugar como qualquer outro para mim.

    - Sr. Wood. Você... ama de verdade a Srta. Wolfgang?

    Hesitei.

    - Por que a pergunta?

   - Ama? - Ela quase não tinha expressão em seu rosto. Isso tornava difícil saber o que estava pensando.

    - Ela saberia se eu não a amasse - falei e desviei o olhar para a lareira.

    - Por quê? - Eu não olhava para Anna mas sabia que ainda me fitava insistentemente.

   - Porque... as mulheres têm um sentido natural. Elas sabem quando um homem gosta delas. - Voltei a olhar para ela. Ela abriu os olhos de um modo interessante e convidativo; permaneceu séria. - Então, - olhei para baixo e apoiei os cotovelos nos joelhos - você estava falando sobre o Hyde Park...

    - Sr. Wood.

    - Sim?

    - Você me acha uma garota bonita?

    Virei o rosto para ela e pisquei intrigado. Não respondi.

   - Desculpe. - Ela desceu o olhar para o chão e ensaiou um sorriso tímido. - Muito nova para perguntar.

   Fiquei olhando para ela. Era a primeira vez que eu a havia visto esboçar algo próximo de um sorriso.

   - Nunca beijei um garoto - ela disse. Tinha o tom de voz de uma garota de seis anos; falava rapidamente mas pensava muito bem antes de responder.

    - Terá sua chance - respondi.

    Ela puxou o ar como se fosse suspirar.

   - Havia um garoto na minha escola no ano passado. Ele foi atropelado no início do segundo semestre, e quebrou o braço. Ele ficava sempre sozinho, mas eu nunca tive coragem de pedir a ele. Existe uma boa chance de eu não chegar aos dezesseis anos, Sr. Wood. E mesmo que chegue, não vou beijar um garoto até lá.

    Olhei confiante para ela.

    - Você vai chegar aos dezesseis, OK? E vai beijar um garoto.

   Então ela sorriu lindamente com o canto da boca. Esse sorriso era idêntico ao de sua irmã. Aquilo fez-me dar um sorriso também.

    - Agora sim - disse eu. - Um sorriso.

  Olhei para baixo. Pude notar que as suspeitas de Bernie eram justificáveis ao analisar o comportamento de Anna mais de perto.

    - Me dê um beijo?

   Virei-me para ela espantado. Ela olhava inocentemente para mim. Não sei se demonstrei algum desconforto mas devo ter titubeado.

    - Não.

    - Senão nunca saberei como é.

    Fiquei constrangido. Alternava meu olhar entre ela e o copo nas minhas mãos.

    - Eu sinto muito. Eu não posso.

    - Não contarei a ninguém.

    - Você, você, você tem catorze anos - gaguejei. - Eu tenho quarenta e seis.

    Ela voltou a olhar para baixo.

    - Eu gostaria de saber como é... Uma vez.

    Olhei fixamente para ela.

    - Anna, esta não é sua última chance para isso.

    - E se for?

  Anna odiava o pai. Possuía um baixo desempenho escolar. Agia de um modo curioso. Tudo indicava que ela havia sido vítima de um crime abominável. Mas nada disso vinha à minha mente naquela hora. Eu só pensava na pena que sentia dela. Ela repetiu o pedido.

    - Por favor me beije?

    Hesitei.

    Suspirei e balancei a cabeça contrariado.

   Inclinei-me para perto e encostei meus lábios nos dela. Ela não se moveu. Ficamos assim por alguns segundos e então afastei-me.

    Estendi o copo com uísque para ela. Ela pegou e levantei-me.

    - Foi muito bom conversar com você, Anna.

    Ela apenas me olhava de baixo em silêncio.

    - Preciso ir agora.

    Caminhei em direção à porta sem olhar para trás. Dei a partida no carro e dirigi para longe.


Bellinzona, 4 de março de 1959.


    Não havia mais tempo a perder. Saímos da casa de Rodelli às 15h45 e andamos uns poucos metros até chegar à casa de Bundy. Tocamos a campainha três vezes, mas não fomos atendidos.

     Eu estava eufórico e curioso para descobrir o final daquela história. Tudo apontava para suicídio. Ou era isso ou Bundy realmente era o assassino. Mas não havia absolutamente nenhum motivo para isso. Teria ele tido um ataque de raiva e matado a menina num ato irracional? E se Susie tivesse acabado com a própria vida essa seria a primeira coisa que Bundy diria em sua defesa. A não ser que quisesse pôr a culpa em Bernie por causa do prejuízo no cassino. Isso explicaria por que ele escondera a parte da notícia que mencionava a maldita caixa de música.

         - Perfeito. Ele não está - falei dando a volta na casa com Piers atrás de mim.

         - O que está fazendo? - disse Piers amedrontado.

         - Precisamos entrar.

        Chegamos aos fundos afundando as solas na neve densa.

      - Mas Bundy não está! - enunciou ele apoiando a mão no meu ombro. Quase fora ao chão ao tropeçar numa pilha de lenha.

       - Exato. É por isso.

      Atrás da casa ficava uma enorme área coberta - um enorme cubo de vidro e metal parecido com uma estufa. A porta de acesso estava trancada.

        - Sr. Condry. Alcance-me por favor um pedaço de madeira.

       Ele obedeceu. Preparei-me para quebrar a porta de vidro.

       - Harper! Se fizer isso, quem pagará o prejuízo?

       - Desconte dos meus honorários.

      Fechei os olhos e golpeei a porta com o pedaço de tronco. Mas não tive resultado além de uma rachadura.

      - É temperado... - murmurei.

      - É o quê? - disse Piers.

   Bati com o tronco na porta novamente com toda a força causando um grande barulho e aumentando as rachaduras.

     - Cristo... - disse Piers olhando ao redor.

   Bati no vidro uma terceira vez abrindo um buraco perto da maçaneta. O ruído fora alto, mas breve. Eu não acho que tenha chamado a atenção de alguém. Meti a mão dentro da abertura e puxei a tranca. A porta abriu-se e eu e Piers entramos.

    Fazia calor ali dentro. Estávamos próximos à grande piscina no chão de pedra. Era sitiada por quatro cadeiras de fibra sintética. O Juniperus estava do outro lado - logo à nossa frente. Também tinha uma boneca de brinquedo jogada no chão. Estava perto de uma amurada de tijolos. Esta separava a área da piscina de uma lareira velha que estava há muito tempo fora de uso. Juntei a boneca e examinei-a.

     - O que é isso? - disse Piers.

    Entreguei a boneca para ele. Dei a volta na piscina. Depois fui examinar a lareira. Não havia nada lá. Fui até a porta de correr - a de vidro que dava acesso à casa. Estava aberta. Entrei. Caminhei rapidamente até a lareira da sala principal. Estava cheia de cinzas. Peguei o atiçador e tirei lá de dentro o que restara de uma pequena peça de madeira. Já estava completamente preta e desmanchando-se. Coloquei o objeto no chão. A tampa já não existia, mas ainda havia vestígios do anjo. E da manivela e do pino de plástico.

    Eu não tive dúvidas. Era a caixinha de música.


Londres, 4 de janeiro de 1956.


    Eu tinha um plano. Mas precisava chegar em casa antes de executá-lo. Tudo dependia do Fiat de Bernie. Era o único meio de que eu dispunha para chegar em Walthamstow facilmente. Cheguei em meu apartamento e não encontrei Bernie lá. A cama ainda estava desarrumada. Peguei o que restava das minhas economias - cerca de 100 libras - e meu 44. Chequei o tambor. Estava totalmente carregado. Regressei ao carro. Dei a partida e voltei para Ruby Road.

    Já estava escurecendo quando cheguei na frente da casa dos Condry. Estacionei o Fiat do outro lado da rua há uma distância segura e desliguei o motor. Fiquei olhando a casa por um minuto. Puxei meu revólver e engatilhei-o. Coloquei-o no bolso do capote. Então ouvi uma voz atrás de mim.

    - Tem certeza que você...

   Meu coração deu um salto. Virei-me rapidamente e saquei o 44 apontando-o para o rosto de Bernie. Ela levantou as mãos sorrindo.

    - Opa! - disse ela. - Fique calmo, baby. Sou eu.

    Abaixei o revólver e suspirei.

    - Sua...! O que diabos você faz aqui?

   - Estou protegendo meu investimento. - Ela pulou para o banco da frente. - E então, qual é o plano? Não vai conseguir vigiar o papai Condry daqui, óbvio.

    - É evidente - falei ainda ofegante. - Mas se você fosse mais observadora e menos engraçadinha perceberia que existe uma pousada à direita da casa.

    Ela abriu o porta-luvas e tirou de lá um binóculo. Abriu o vidro e viu pela janela.

    - Hum... É verdade. Tem uma janela que fica bem em frente à janela do quarto de Anna. Acho que entendi seu plano, Clint. Mas você não precisa gastar seu precioso dinheiro nisso. Nossa estadia vai ser por minha conta.

    - Nossa estadia...

  - Sim. E aposto que eles têm um quarto bem aconchegante, com uma cama macia, e uma banheira maior que a sua, em que caibam duas pessoas.

    - Por favor... - falei aborrecido.

   - Mas se você prefere gastar toda a sua poupança de uma vez, fique à vontade. Você dorme aí sozinho e eu pego o meu carro e vou embora.

    Eu e Bernie registramo-nos na pousada sob os nomes de Clint e Mary Chandler. O preço da diária era alto, mas Bernie arcaria com as despesas.

    - O quarto não é tão pequeno, - disse Bernie quando entramos - e nem a cama. Caberiam cinco pessoas nela.

    Eu estava dando uma gorjeta ao garoto que nos mostrara o caminho até ali.

    - Aqui está, filho...

    - Obrigado, senhor - disse ele. Então saiu e fechou a porta.

    Bernie já estava no banheiro, checando a banheira. Ouvi o eco da voz dela.

    - Dê uma olhada nisto, strudel.

    Fui até lá.

    - Esta banheira deve ter uns mil litros. Vamos testá-la?

   Fui até a janela que dava para a casa dos Condry. A cama ficava junto a ela. Ficava há alguns centímetros da parede. Abri as lâminas da persiana. Eu podia enxergar perfeitamente o outro lado. Com o binóculo seria possível saber tudo o que passar-se-ía no quarto de Anna. No momento havia uma luz acesa lá dentro. Era de um abajur. Por sorte a cama dela ficava perto da janela e posicionava-se ao longo da parede mais próxima. Isso estava há cinco metros de mim.

    Senti Bernie abraçando-me e apoiando o queixo no meu ombro.

    - A banheira está quase cheia - ela sussurrou. - Vamos brincar de Titanic?

    - Estou ocupado agora, Bernie. Use logo aquele banheiro que eu também preciso tomar banho.

    - Meu nome não é Bernie. É Mary. Sou sua esposa.

    - Você trouxe o binóculo?

    - Sim, está logo ali.

    - Ótimo...

   - Eu acho que Anna ainda vai demorar para aparecer. São só 20h00. Dá tempo de tomarmos um banho juntos, comermos alguma coisa e depois tomarmos outro banho.

    - Não vim aqui pra isso. Apresse-se.

    - Jesus... Será que você nunca perde o controle?!

    - Não.

   - Que seja, então. Eu vou tomar banho sozinha. Pelo jeito você vai ficar a noite toda nessa janela... Espero que fique cego.

    Ela entrou no banheiro e bateu a porta. Peguei o binóculo e apaguei a luz do quarto para enxergar melhor.

     Bernie saiu do banho e se vestiu. Depois desceu para jantar. Fiquei tentando observar o que se passava no quarto de Anna. Ela aparecia apenas de vez em quando, acendia a luz e fazia coisas como pentear o cabelo e lixar as unhas. Dali a pouco ela saiu e ficou vários minutos sem voltar. Devia estar na cozinha jantando ou brincando com Susie.

     Nesse ponto eu relaxei. Abri o paletó e afrouxei o nó da gravata. Ajustei o aquecedor. Acendi um cigarro. De repente ouvi um vago som de automóvel. Era o carro de Draven. Ele chegara. Com certeza era ele. Bernie chegou no quarto bocejando.

     - Alguma novidade?

    - É. Veja. - Entreguei o binóculo a ela. Ela passou por mim e apoiou-se no parapeito para observar. Acendi novamente meu cigarro.

       - É... Parece que o papai está em casa. Nada especial, do meu ponto de vista.

       - Agora começa a verdadeira investigação. Os próximos minutos serão decisivos.

     - OK, entendi o que você quer provar. Se você não se importa, Clint, vou preparar-me para ir à terra dos sonhos.

      - Fique à vontade. Mas não acenda a luz do quarto.

    Draven entrou em casa e fechou a porta. As luzes da casa estavam quase todas apagadas naquela hora. O vidro da minha janela começou a ficar embaçado. Mas Anna ainda tinha sua luz acesa. Estava lendo alguma revista.

    Bernie voltou do banheiro. Vestiu uma camisola cor-de-rosa - bem incomum de sua parte - e deitou-se no lado de lá da cama sob dois grossos cobertores acolchoados. E pela sua voz ela aparentava estar com sono.

      - Boa noite, strudel - murmurou.

    Ela falou alguma coisa sobre percevejos e bumbum, mas não dei atenção. Estava tentando descobrir que revista Anna estava folheando. Depois de um tempo ela largou a revista e apagou o abajur.

      Quando meu relógio marcou 4h00 Bernie chamou meu nome. Depois virou para o lado e voltou a dormir. A noite estava densa. Todos dormiam.

      Às 6h00 algumas luzes da casa acenderam-se, mas não a do quarto da moça. Draven saiu para trabalhar às 7h00. Sua esposa ficou na cozinha. Acendeu um cigarro. Até então eu não sabia que ela fumava. Fumou dois cigarros. Anna continuava dormindo. Talvez Susie também.

     Às 7h30 Bernie acordou. Escutei-a ligando o chuveiro. Eu não havia conseguido resultado algum em minha vigília. Teria de tentar novamente na noite seguinte. Bernie saiu do banheiro e quando abriu a porta o vapor veio com ela para o quarto. Estava envolta num roupão e sua cabeça estava enrolada na toalha.

     - Tem cigarro, Clint? - disse depois de procurar em sua valise.

    - Tome - falei. Estiquei o braço e ela pegou o cigarro com a boca. Deu meia-volta, mas depois virou-se novamente para mim.

     - Hum - ela disse sem tirar o cigarro da boca. - Fogo.

    Joguei meu isqueiro para ela e ela acendeu o cigarro. Tornei minha atenção ao prédio vizinho e verifiquei com o binóculo se tudo estava na mesma. Nada mudara. Esfreguei os olhos e servi-me de um pouco do uísque que estava em cima do frigobar. Tirei os sapatos e a camisa.

    Bernie abraçou-me por trás. Ela ficou alisando meu rosto com uma mecha do próprio cabelo - como fazia anos atrás.

     - O que prefere agora? - murmurava. - Chá, banho... ou eu?

    Segui tirando a roupa.

    - Banho - falei.

    Ela apertou-me com mais força.

    - Oh, por que não relaxa um minuto? - ela disse arrastando a voz. - Podemos lavar-nos à moda felina...

    Desvencilhei-me gentilmente dos braços dela. Fui para o banheiro e fechei a porta. Ouvi a voz desanimada de Bernie.

     - Ou não.


Bellinzona, 4 de março de 1959.


    Eu e Piers fizemos uma busca por toda a casa, mas não encontramos nada de significativo além do que estava na lareira: a caixinha de música parcialmente destruída e pedaços de um tecido cor-de-rosa chamuscados. Ainda havia manchas de sangue no teto - logo acima de onde a menina fora baleada.

    As provas não eram muito convincentes mas confirmavam o que eu suspeitava desde que me encontrara com Bernie no Unione. Só havia uma pessoa que teria motivos para matar Susie e ela precisava confessar o crime. Era a única forma. Eu precisava pressioná-la da maneira correta. Ou o assassinato ficaria impune.

     - Sr. Condry - gritei. Ele veio correndo do segundo andar.

     - O que foi, Harper? - ele disse nervoso. - Encontrou mais alguma pista?

    - Já sei quem é o criminoso - falei calmamente. Recostei-me ao lado da lareira e pus as mãos nos bolsos.

     Piers sorriu abismado.

     - Mesmo? E quem é, Harper? Diga de uma vez!

   - Direi. Mas antes quero todos os envolvidos. Todos têm de estar aqui. Preferencialmente a polícia também.

    - Mas a delegacia mais próxima é muito longe daqui! Levará pelo menos uma hora antes que cheguem!

     - Não, não creio. Levará de 30 a 40 minutos.

     - Certo, então faça os telefonemas. Eu vou lá para fora aguardar até que...

     - Não! - falei. - Você vai ficar aqui.

    Ele parou e olhou para mim com cara de surpreso e um leve sorriso no rosto. Ficou assim por um instante.

    - OK - disse ele cansado. - Como você quiser. - Caminhou até a escada e sentou-se num degrau.

    Desviei o olhar dele e fui até o móvel do telefone ao lado da porta que dava para a cozinha. Abri a gaveta. Retirei de lá uma lista telefônica.

    A primeira pessoa para quem tentei ligar foi Bernie, mas ela não estava na suíte. Pedi então à recepcionista que desse a ela um recado caso ela retornasse dentro de uma hora: que se dirigisse imediatamente ao seguinte endereço. 12, Rua Como, Cagliostro.

    Em seguida telefonei à delegacia e pedi para falar com o inspetor Refosco. Pedinchei que viesse num automóvel comum - à paisana - junto com mais alguns homens. Ele perguntou o motivo e eu disse que havia acabado de acontecer uma invasão de domicílio.

    - Sim - falei. - É da casa de Bundy. Desmond Bundy. Sim. Exato. E não estacione muito próximo à residência. Apenas proceda conforme eu disse. Certo... Certo. Até já.

    O terceiro telefonema foi para solicitar a presença de Rodelli. Estaria lá em um ou dois minutos. Então desliguei o telefone.

    Piers ainda estava sentado na escada, fumando.

    - Diga-me logo o que está tramando, Harper.

    Abri a boca para responder. Mas antes que fizesse Bundy apareceu na porta dos fundos atônito.

    - Mas o quê... - Estava indignado mas manteve a serenidade e o autocontrole habituais. - Qual o significado disto?

   - Esqueça - falei caminhando até ele. - Tenho boas notícias. Já sei quem é a pessoa que assassinou sua neta.

     Ele parecia não ouvir. Estava com a atenção voltada para a porta de vidro que eu havia quebrado.

         - Sr. Bundy... Disse que já descobri quem assassinou sua neta.

         Ele voltou-se para mim irado e gritou:

         - Ora, então fale de uma vez!

      - Ainda não. Não quero ter de explicar tudo mais de uma vez. É bom que a polícia esteja presente ou pelo menos mais uma pessoa. Isso diminuirá o número de vezes que precisarei repetir. Por favor espere aqui até que mais alguém chegue.

         - Até que mais alguém chegue? E por que mais alguém chegaria?

         - Porque eu tomei a liberdade de telefonar aos demais suspeitos. Para que eles ouvissem meu veredicto.

         - Você fez o quê?

        Nisso ouvimos três batidas lá fora na porta de vidro.

        - Com licença, estou entrando.

      Era Rodelli. Aparecera na porta dos fundos com sua bengala. Usava seu boné de veludo e um cachecol de lã.

       - Chamou-me, Sr. Harper. Aqui estou. Sr. Bundy. Sr. Condry.

     Piers cumprimentou com a cabeça. Estava aparentemente calmo. Mas eu tinha certeza de que no íntimo estava ansioso e otimista quanto ao desfecho da história.

    Bundy era ocasionalmente um cavalheiro. Mas não ofereceu assento ao velho. Em vez disso caminhou lentamente até mim. Estava aborrecido com a situação, mas tentava ao máximo permanecer calmo.

     - Sua falta de classe incomoda-me, Sr. Harper. Se descobrir a identidade da pessoa que matou minha neta e roubou-me 6 mil francos é algo tão importante para o Sr. Condry, dê o veredicto. E depois, por favor, quero vocês dois fora da minha casa.

    Acendi um cigarro. Soltei a fumaça e puxei o chapéu para trás. Eu sabia que a essa altura nenhum dos três homens sairia dali até que ouvissem meu veredicto.

    - OK - falei olhando para os sapatos de Bundy. Haviam sido engraxados há pouco tempo e brilhavam lindamente. Cocei a testa. - Tudo está conforme o planejado. Exceto que a segunda personagem feminina da minha história não está presente. Bernie ainda não chegou e honestamente não sei se virá.

      - A segunda? - disse Rodelli. Parecia divertir-se com a situação. - E quem seria a primeira?

     Traguei meu cigarro e olhei despreocupadamente para ele.

     - Susie - respondi.

     - Ah! - ele aprovou sorrindo e aparentemente excitado.

    Bundy já estava de olhos fechados e mãos na cintura.

    Piers ainda fumava balançando a perna cada vez mais rápido.

    - Por Deus, Harper... - disse arregalando os olhos. - Diga de uma vez! Tenho seus honorários bem aqui! Apenas diga, homem!

    - Que tal irmos para a sala de jantar? - falei lançando o que restava do meu cigarro na lareira e enfiando as mãos nos bolsos. - O Sr. Bundy tem um excelente vinho do Porto. Lá poderemos nos sentar ao balcão e todos poderão digerir melhor as informações. Sr. Bundy? O que acha?

    Bundy meneou a cabeça e fez um sinal de desdém com a mão. Parecia não se importar mais com o que aconteceria. Seu bom humor estava esgotado e um pouco de álcool não lhe pareceu má ideia. Serviu vinho do Porto para os dois homens e para mim. Depois serviu um cálice para si mesmo. Piers estava tão impaciente que bebeu o cálice todo de uma vez.

     - Muito bem, Harper - disse. - Agora...

    - Sr. Condry - falei. - O senhor foi o único que me acompanhou em minha investigação. Conhece todos os suspeitos. Dê seu palpite. Quem matou Susie Condry?

    Piers ficou animado. Abriu um leve sorriso e relaxou na poltrona.

    - Quer mesmo que eu dê meu palpite? - Ele ergueu uma sobrancelha.

    Fiquei quieto. Fitei seu rosto e mantive minha seriedade.

    - Está bem. - Ele deu de ombros. - Rodelli matou.

   Rodelli olhou com espanto para Piers. Este não se incomodou a ponto de devolver-lhe o olhar. Bundy estudava a situação. Estava mudo.

    - E como fez isso? - falei.

    - Sr. Harper - disse Rodelli. - Sua pergunta não deveria ser "por quê"?

    Não respondi. Fiquei olhando para Piers.

    - Como? Bem, disparando com uma arma de fogo, óbvio. A arma deve estar escondida em sua casa. Ou ele deve ter-se livrado dela.

     - E qual seria o motivo? - falei fechando os olhos. Minha cabeça estava começando a doer.

     - Ganância. - Ele olhou para uma sujeira na unha de seu indicador.

     - Ganância? - disse Rodelli franzindo a testa. - Confesso que não entendi.

     - Sr. Condry. Explique-se - falei num suspiro.

   - Ele esperou pela oportunidade perfeita para roubar as economias de Bundy - disse Piers. - Quando Bundy saiu de casa, embriagado, com certeza deixou a porta destrancada. Então Rodelli entrou e...

    - Eu já disse que não deixei a porta destrancada - disse Bundy.

    - Como poderia lembrar? Estava bêbado.

  - Eu não sei. Mas recordo. Eu tranquei a porta à chave. Nunca deixaria a casa aberta. Definitivamente, todas as portas e janelas estavam trancadas.

   - Então, Bundy, como explica o fato de não ter havido sinais de força na porta, por parte do invasor?

    - Nisso concordo com o Sr. Condry - disse Rodelli. - Vim até aqui depois de ouvir o tiro, e posso confirmar que a porta estava aberta.

    - Está bem - falei antes que Bundy abrisse a boca para negar. - Continuemos. Sr. Condry?

   - Certamente - disse Piers. - Bem, então... Rodelli entrou para roubar todo o dinheiro do cofre. Quando havia recolhido apenas 6 mil francos minha neta Susie apareceu. Para não deixar testemunhas, Rodelli disparou contra sua cabeça e...

    - Basta! - gritou Rodelli. - Não acredito nisso! Eu nunca faria mal a ninguém, menos ainda a uma garotinha órfã de seis anos de idade! Que diabos me levem, se eu estiver mentindo!

    - Acalme-se - falei. Olhei para Piers. - Isso é tudo?

    - Sim - disse ele.

    - OK. - Bebi um gole de vinho do Porto. - Rodelli? Quer dar seu palpite?

  Rodelli olhou para mim hesitante. Mas no fim decidiu soltar a palavra - que saiu trêmula e relutante.

    - Suicídio.

   Bundy permitiu-se soltar uma risota. Virou o resto do vinho na boca. Piers abriu um sorriso e esfregou lentamente os olhos. Em seguida bocejou. Rodelli ficou sério e constrangido.

    - Por que acha que foi suicídio? - perguntei bebendo o restante do vinho.

    - A menina não era feliz.

    - Onde ela conseguiu a arma?

    - Eu não sei.

    - OK. Sr. Bundy?

    Bundy olhou para mim paciente. Tinha o olhar vago e cômico.

    - O quê? - disse.

    - Seu palpite.

    - Eu acho que já lhe disse, Sr. Harper. - Ele tornou seu olhar sério e fixou-o em minhas pupilas. - Eu não ligo quem matou, eu não ligo por que matou, eu não ligo como matou. Nada trará Susie de volta. Nada! Tudo o que quero agora é ter paz. Sossego. Não quero vingança.

    Acendi um cigarro.

    - Veja... Não se trata de vingança... o indivíduo que assassinou sua neta está à solta e pode muito bem fazer outras vítimas.

      - Bem, Sr. Harper... - Ele pousou calmamente a taça numa mesinha ao lado da poltrona. Bateu as mãos nos joelhos e levantou-se. - Eu não posso mais ajudá-lo. Já lhe dei o nome da Srta. Benziger. Ela é quem deveria estar em meu lugar neste interrogativo.

       - Ela já passou por este interrogativo. - Traguei novamente uma grande quantidade de fumaça e senti-a misturar-se com o vinho do Porto no meu corpo. Isso dava-me uma sensação muito boa. - E admito que fui muito deselegante com ela. Até bati nela. Não me orgulho. Mas agora chegaremos a um veredicto sobre as três incógnitas do caso usando o método de eliminação.

      "Primeiro como a garotinha morreu? Não pode ter sido por acidente porque existem evidências óbvias de que ela foi baleada na cabeça por alguém. Resta então o suicídio ou o assassinato. Podemos descartar o primeiro."

      - Por quê? - disse Rodelli interessado. - Alguém poderia, por algum motivo, ter escondido a arma após o suicídio.

       - A razão pela qual não tem como ter sido suicídio... é que havia sinais de luta - falei olhando fixamente para ele.

        - Como assim? - disse Piers descruzando as pernas. - Que sinais?

       - Vocês certamente lembram-se de que o vestido da menina estava rasgado. - Os três homens olhavam-me. Evidentemente procuravam uma brecha em meu raciocínio. - E não era um rasgo qualquer. Era grande. Não era, Sr. Bundy?

        - Era - Bundy falou. - De fato.

      - OK. Então é certo que ela foi assassinada. Mas como foi isso? Estão em meu poder umas evidências que encontrei nesta casa há alguns minutos. Na lareira da sala.

        - O que quer dizer? Que evidências?

       - A primeira é um conjunto de trapos manchados de vermelho. Estão parcialmente queimados. Mas não é difícil ver que se trata de uma peça íntima feminina. Arrisco dizer que era de Susie. Se estiver correto ela foi violentada. Isso dá-nos um motivo.

       Ninguém ousou contestar essa hipótese. Continuei.

       - A segunda prova é o que sobrou da caixinha de música.

       - Que caixinha de música? - disse Bundy.

       - A caixinha de música que estava ao lado de Susie quando a imprensa chegou.

       - Ah, sim. Claro.

       - Não se lembrava? - falei sorrindo.

       - Sim, é que... aqui costumamos chamá-la de scatola - ele disse olhando pra baixo.

       - Sim - disse Rodelli. - Scatola musicale.

       - Scatola... - falei pondo o restante do meu cigarro dentro da taça vazia. - E onde conseguiu?

       - Comprei-a de um vendedor ambulante, há muito tempo - disse Bundy.

       - Em Londres?

       - Sim.

       - Emprestou-a a Susie?

       - Não. Deve ter sido Benziger.

       - Como ela saberia que a caixa é uma arma fatal?

       - Não faço a menor ideia.

       - Uma arma? - disse Piers.

     - Sim. Quando a canção termina a caixa dispara um projétil. É pequeno mas faz um grande estrago. Mas voltaremos a essa questão mais tarde. Agora a última incógnita. Quem foi capaz de tirar a vida da criança?

      "Podemos começar excluindo o Sr. Condry. Claro que ele poderia ter matado Susie para vingar-se por algum mal que o Sr. Bundy talvez lhe tenha feito. Vocês dois não parecem se dar muito bem."

       - O quê?! - disse Piers.

     - Mas eu não acho que ele tenha mandado alguém lá em Londres matar a menina e depois contratado um investigador particular para resolver o caso - falei sério. Ninguém contestou. Piers sorriu discretamente.

       - Imbecil... - murmurou servindo-se de mais um pouco de vinho.

       - Confesso que também pensei em Refosco - falei. - Ninguém aqui pensou nele?

      Não houve resposta.

      - Ninguém pensou nele? - insisti.

      - Qual o álibi dele?

      - Exato. Ele não tem álibi. Algum de vocês gostaria de defendê-lo?

      - Não vejo motivo para considerá-lo um suspeito - disse Rodelli.

      - Então por que ele arquivou o caso, tão negligentemente? - disse Piers.

      - Eu não sei. Moleza, talvez?

      - Sim - falei. - Teremos que aceitar isso.

      - Certo... Restam três suspeitos, então? - Rodelli disse.

      - Três? - disse Bundy.

      - Sim. Eu, o senhor e a jovem ladra de quem todos falam. Signorina Benziger?

      - Na verdade - falei - ela é Bernie Engelmann.

      - A ladra? - disse Piers. - A de Londres?

      - Sim.

      - Então... É ela a culpada?

     Respirei fundo.

     - Sim. E não.

     - Mas que droga de resposta é essa?

     - Bernie é culpada de ter roubado os 6 mil francos. Esse assunto o Sr. Bundy terá de resolver com ela depois. Mas posso assegurar-lhes de que ela não é a assassina.

      - Não é? - Piers disse espantado.

      - Não.

      - Isso significa que... que a pessoa que violentou e assassinou minha neta...

      - Sim. É um destes dois cavalheiros aqui.

     Os dois cavalheiros entreolharam-se. O olhar de Bundy era de decepção; o de Rodelli, de espanto.

       - Senhores... - falei. - Não façam nenhum movimento brusco. Tentem ficar calmos. Permitam-me ser claro. Bernie Engelmann é uma anarquista famosa em todo o território inglês. Sr. Bundy. O senhor deve ouvir falar dela há anos. Todo londrino que lê o jornal sabe que ela é uma mulher impertinente e audaciosa; uma ladra que zomba da justiça. Independentemente dos esforços das autoridades ela sempre consegue o que quer. Sr. Condry. Estou proferindo a verdade?

        - De fato. É uma vagabundinha engenhosa, aquela.

       - Obrigado. Agora... Ela confessou ter roubado os 6 mil francos do Sr. Bundy. Mas disse que não cometeu assassinato. E ela dificilmente mentiria. Não há motivos para mentir. Aquela mulher não tem medo da prisão. Já escapou de dezenas de prisões.

         - Esse é o álibi dela? - disse Bundy.

         - Sim. Pode-se dizer isso.

       - Você está tentando dizer-me então que Rodelli entrou na minha casa, violentou e matou minha neta e depois jogou as provas na lareira para incriminar-me?

      O velho saltou sobre Bundy num acesso de raiva e derrubou-o da poltrona. Bundy tentava desvencilhar-se enquanto o outro sufocava-o com as mãos em seu pescoço. Foi preciso que eu e Piers agíssemos ao mesmo tempo para tirar um homem de cima do outro.

        - Cavalheiros. Mantenham a sanidade até que eu dê o veredicto final - falei ajudando Bundy a levantar-se enquanto Piers agarrava Rodelli e punha-o de pé. Os dois senhores nervosos voltaram então aos seus assentos. Rodelli ofegava de cólera.

         - Você deve-me desculpas - disse Bundy. Olhava rancoroso para Rodelli. Este não respondeu.

        - Diga logo quem é o culpado, Harper, para que eu possa espancá-lo até a morte - disse Piers. Estava ansioso e mal-humorado. Eu não tinha certeza se ele estava brincando ou não. E não me importava.

      - Sim, diga de uma vez - disse Rodelli. Estava sombrio. Apalpava os bolsos na cata do cachimbo. - Quero ir para casa e sair da presença deste homicida.

          - Infanticídio, meu caro - disse Bundy. - É o que você cometeu.

          - Não há provas contra mim.

          - Bem, contra mim também não.

        Confesso que fiquei um tanto nervoso quando fiz a seguinte declaração. Mas respirei fundo e acho que disfarcei bem.

         - É verdade - falei. - Não existem provas. Mas você vai confessar. Não vai... Bundy?

      Todos olharam para mim atônitos. Depois olharam para Bundy - com certeza imaginando-o violentar e matar Susie.

         - Confessar o quê? - disse ele.

         - O que acha?

         - Não pode estar achando que matei minha neta!

        - OK. Não precisa confessar agora. - Posicionei-me confortavelmente na cadeira; peguei outro cigarro e acendi-o; soltei a fumaça e senti-me mais tranquilo. Descruzei as pernas e cruzei-as novamente. - Ouça a minha história primeiro.

         - Estou ansioso - ele disse suspirando.

    - Bem... Antes de Susie chegar você já era um jogador viciado. Frequentava o Nozari regularmente. Arrisco dizer que pôquer é seu jogo favorito. Mais ou menos na mesma época em que Susie chegou você começou a intensificar seu vício e tornou-se um alcoólatra. Não sei quando Bernie veio para cá mas sei que ela é muito boa no pôquer. Você começou a perder pra ela e logo tornou-se um devedor. Passou a dever 6 mil francos a ela, mas não tinha a intenção de pagar. Seu objetivo sempre fora reverter a situação por meio do pôquer.

      "Não duvido que Susie tenha ficado preocupada com você. Ela sempre pensava antes nos outros. Acredito que você começou a violentá-la regularmente algumas semanas antes de sua morte. Mas ela começou a falar com Rodelli. Isso deixou você amedrontado. Obviamente você não podia correr o risco de deixar que alguém sequer suspeitasse que Susie estava sendo violentada. Então na noite do dia 28 você bebeu mais do que de costume e fez algo que sem a bebida não teria coragem. Deu a Susie sua caixinha de música. A caixinha inglesa. A que dispara um projétil assim que a melodia acaba. Em seguida você pegou todas as roupas íntimas ensanguentadas da menina e jogou-as na lareira. As brasas mal estavam acesas. Mas você não deixou que isso atrasasse-o. Saiu para o Nozari e trancou a porta.

       Não olhei na cara de Piers. Mas Rodelli encontrava-se na minha frente e pude ver que estava atônito.

      - Bernie então chegou e entrou aqui de algum modo; não sei como nem por onde. - Dei uma tragada. - Ela ouviu a garotinha no momento em que ela girava a manivela da caixa. Susie reconheceu a melodia e começou a acompanhar cantarolando. Quando a música parou Bernie ouviu o barulho da bala. Subiu as escadas e viu a menina morta. Depois tratou de roubar o que lhe era devido: os 6 mil francos.

        - 6 mil francos que ela ganhou trapaceando - Bundy disse sério.

       - Não duvido - proferi acendendo mais um cigarro. Soltei a fumaça na direção de Rodelli. - E aí apareceu Rodelli pra saber do barulho e Bernie caiu fora. E... Eu acho que é isso.

        - Conjecturas! - riu Bundy. - O senhor por ventura pode provar que sou eu o assassino?

        - Você não negaria que fala italiano fluentemente. Negaria?

        - Aonde quer chegar?

     - Uma pessoa em sua posição não ocultaria absolutamente nada que pudesse ajudar um investigador a descobrir o máximo possível sobre o caso. Não é?

        - Ocultar? Naturalmente que não!

        - Então por que nos ocultou a parte do corpo da notícia do número do dia primeiro do Gazzetta que informava ao público a existência de uma caixinha de música ao lado do corpo? - eu disse num só fôlego.

        - Eu certamente falei!

       Virei a cabeça e olhei para Piers.

       - Ele falou? - eu disse.

       - Não, não falou - disse Piers. Estava com a respiração pesada e olhava sério para o suspeito.

      Virei-me novamente para Bundy.

      - Já somos duas testemunhas.

    - OK, então na pior das hipóteses eu esqueci de mencionar! - disse Bundy. - Isso ainda não significa nada!

     - Você esqueceu a arma usada no assassinato de sua neta. Honestamente eu não acho que o júri vá engolir essa. - Olhei para Piers. - Você acha que o júri vai engolir essa?

      - Jamais - disse ele. - Não acho. Agora deixe-me arrebentar a cara dele.

      - À vontade. Mas lembre-se de que os tiras estão vindo.

     - Espere! Espere! - Bundy gritou erguendo-se lentamente da poltrona. Eu nunca o havia visto tão eufórico e corado. As veias do pescoço e da cabeça saltavam-lhe. - O motivo de eu ter esquecido... é que não acho que a caixa de música seja uma caixa. Digo, uma arma. Não sei de onde o senhor tirou isso! Uma arma numa caixa de música! É ridículo! Não existem armas assim! Aposto mil contra um que não existe no mundo inteiro tal invenção absurda!

     - Puxa... Acho que está certo...

    - Infelizmente sim, Signor Harper - disse Rodelli. - Temo que, agora que a caixa está destruída, não será fácil explicar o mecanismo ao juiz.

    Seguiu-se um silêncio que durou um minuto. Bundy estava mais calmo. Havia se recostado na cadeira e sua expressão era nula. Traguei meu cigarro. Estava tentando passar a impressão de que estava preocupado. Piers continuava ansioso e parecia estar aguardando por uma resposta minha. Não reparei em Rodelli. Cocei a testa.

    - É... - falei. - Será difícil explicar ao juiz... A não ser que... Oh! Claro! - Coloquei a mão na testa como se lembrasse de algo. Percebi que atraí a atenção dos homens comigo. Sobretudo de Bundy. Ele ergueu o queixo e moveu o cenho.

    Tirei do bolso a caixinha que Bernie dera-me.

    - O que é isso? - disse Piers. Era o único que parecia ansioso pela verdade.

    Joguei a caixinha para ele. Fumiguei o resto do cigarro e pressionei-o contra o cinzeiro.

    - A arma - respondi soltando pelas narinas o que restava da fumaça em mim. - Acho que agora será fácil explicar ao juiz. Não se preocupe; não está carregada.

    Ele examinou a caixa após abri-la e depois olhou alternadamente para nós três. Girou a manivela. Deu nela duas voltas. Soltou-a. A sinfonia de Bach começou a tocar. Tocou por alguns segundos até que se ouviu um estalo forte que cessou a música. O pino havia se soltado.

    - O que foi isso? - quis saber Rodelli. Estava em sua habitual serenidade.

    - O disparo. Se houvesse uma bala aí dentro o Sr. Condry estaria com a família agora.

    Todos olharam para Bundy - que estava cabisbaixo e solene.

    - Ora, ora... - Rodelli disse sorrindo. - Parece que se acabaram seus argumentos, Sr. Bundy.

   - Vou arrancar os braços dele - Piers disse erguendo-se. Estava com lágrimas nos olhos. Bundy levantou o olhar para ele.

    - Espere - falei erguendo a mão. - Bundy. Você vai confessar?

   - Sim - Bundy disse sério. Piers votou a sentar-se. - Quando Susie chegou ela começou a perguntar detalhes sobre a minha vida. Eu nunca a havia visto antes. Nunca havia visto uma menina tão encantadora, tão... refinada, tão... interessada em quem eu era, em como vivia, no que eu fazia.

    Bundy contou então que havia pensado em matriculá-la em uma escola de música, porque ela realmente gostava de seu piano. Ficava mexendo nele por horas todos os dias. Ela não queria comer. Ficou muito magra em poucas semanas. Fizeram um acordo então: ela alimentar-se-ia regularmente e Bundy dar-lhe-ia aulas de piano. Ela aceitou e Bundy passou a ensiná-la todos os dias. Ela gostava muito. Logo ele ensinou-a a cozinhar. Ela passou a cozinhar para ele. Ele passou a ir com mais frequência ao Nozari porque a ladra era um desafio para ele e ele nunca conseguia derrotá-la no pôquer. Mas sabia que quando voltasse para casa haveria sempre uma omelete ou uma rabanada esperando por ele.

    Mas numa certa noite ele chegou em casa depois de perder muito dinheiro e foi direto para o armário de bebidas - aquele acima do balcão. Quebrou uma taça. Estava muito irritado naquela hora. Bebeu três copos de vinho do Porto. Ouviu a voz de Susie atrás de si. Mas não distinguiu as palavras. Embriagado daquele jeito nem poderia. Estava preocupado em como faria para recuperar seu dinheiro - uma porcentagem significativa de suas economias. Ele estava prestes a ter um colapso quando Susie chamou-o novamente.

     - Cala a boca! - berrou jogando o braço para trás e batendo a mão num objeto duro.

   Quando se virou Susie estava ajoelhada no chão olhando para fragmentos de um prato de porcelana e uma omelete desmantelada. Então Bundy foi para seu quarto e ficou lá até o dia seguinte.

    Ele conversou com Susie pela manhã. Pediu desculpas e ficou tudo bem. Ele até conseguiu recuperar um pouco do seu dinheiro à noite. Mas então começou a beber muito no cassino e a chegar em casa bastante insano.

      Ele violentou Susie duas ou três vezes. Então ele começou a desconfiar de que ela contava tudo a Rodelli. Então... O resto foi como eu dissera.

      - Onde conseguiu a caixinha? - falei.

      - Em Londres, com um conhecido, anos atrás.

      - OK. - Olhei para Piers e sorri. - Está satisfeito?

      - Não - ele respondeu com as pálpebras trêmulas. - Quero matar esse maldito.

     - Espere um minuto. - Descruzei as pernas e levantei. - Pague-me o que deve. Depois faça o que quiser, mas não esqueça que a turminha do Refosco vem aí. Aliás... - Olhei pela janela. Já estão aqui - Sr. Rodelli... Obrigado pela cooperação. O senhor pode ir pra casa agora.

     Recebi meu dinheiro e deixei tudo nas mãos de Piers.

    Encontrei o carro de Bernie junto ao de Refosco quando saí... e ela estava dentro dele. Estava bonita de óculos escuros redondos.

     - O que está fazendo aqui? - indaguei. Pus a cabeça para dentro da janela.

     - Estava esperando você. Como foi?

     - É uma longa história.

     - Quer contar-me durante o jantar?

     - Onde?

     - Buca Mario, Florença! - ela disse forçando um sotaque italiano.

     - Já tem as passagens?

     - Primeira classe, 19h45.

     - Está bem. Vamos ao Unione pegar minha bagagem.

    Entrei no carro. Ela deu a partida e dirigiu.


Londres, 5 de janeiro de 1956.


    À noite eu voltei a vigiar o quarto de Anna. Bernie estava sentada na cama há algum tempo. Estava lendo uma revista de moda com uma lanterna. Já eram 23h00 e eu já estava prestes a desistir.

     Aquilo era ridículo. Eu estava espiando uma moça de 14 anos - esperando uma oportunidade de deitar a mão num homem que eu mal conhecia por causa de uma suposição de uma mulher que provara muitas vezes não ter o menor interesse em alguém que não fosse ela mesma. Para falar a verdade eu também não tinha. Bernie pagar-me-ia uma grana alta - eu encontrando provas ou não. É por isso que eu havia dado a ela um prazo. Aquela seria a última noite. Depois daquilo eu pegaria meu dinheiro e voltaria para casa e nunca mais aceitaria um caso de Bernie de novo. Mas de repente a luz do quarto de Anna acendeu-se.

     Empertiguei-me e peguei o binóculo.

     - O que é? - ouvi Bernie dizendo.

     - Apague essa lanterna - falei com um gesto. - É Condry.

    Bernie obedeceu e veio para o meu lado.

    - Tome - falei oferecendo-lhe o binóculo. - Vou pegar a câmera.

    Fotografei Draven várias vezes. Consegui capturar alguns momentos em que ele estava em cima da garota. Bernie observava com atenção. Não estava chocada - ao contrário de mim. Logo já estava sorrindo.

    - Agora pegamos você, seu desgraçado... - ela disse mais para si mesma do que para mim.

    - OK... Vamos trocar um pouco. Pegue isto. Rápido!

    Ela então assumiu a câmera e eu fiquei com o binóculo.

    - Que idiota... - disse ela. - Por que ele não apaga a luz?

   Depois de fotografar a cena cerca de 10 vezes ela caminhou por cima da cama e saltou para o chão.

    - Certo - disse. - Já é hora de acabar com a festinha daquele pervertido.

    Ela calçou as botas com pressa e nós dois corremos para a rua. Fomos até a porta da frente da casa dos Condry. Bernie deu um tiro na porta e fomos correndo pela casa escura até o andar de cima. Subimos as escadas de dois em dois degraus. Bernie entrou no quarto do casal - onde Serina estava - e eu entrei pela porta oposta - o quarto de Anna. Draven estava ajustando o cinto e a moça estava coberta até o pescoço com o edredom. Parecia assustada.

    - Sr. Wood? - ele disse nervoso. - O que significa isso?

    - Por favor, perdoe-me pela invasão, Sr. Condry, mas eu e Bernie estávamos aqui por perto quando ouvimos o som de um tiro que parecia ter vindo de sua casa - falei de modo claro e inocente. - Quando nos aproximamos, vimos que sua porta estava com a fechadura avariada.

      - Sim... também ouvi um tiro... - ele disse preocupado. - O que terá sucedido?

    Bernie apareceu no quarto com Serina. Esta estava de roupão e com os olhos arregalados e úmidos. Olhei para Bernie.

      - Querida, Serina está bem? - falei.

      - Draven? - disse Serina. - Sr. Wood? O que aconteceu? Onde está Susie?

     Ela virou as costas e dirigiu-se ao quarto de Susie. Bernie foi atrás.

     - Não havia ninguém lá embaixo, Sr. Wood? - disse Draven.

     - Não.

     - Vamos descer e ver o que realmente aconteceu.

    Descemos juntos e Draven concluiu que a bala fora disparada de fora para dentro. Não havia sinais de que mais alguém houvesse entrado na casa. Tudo o mais estava intacto. Propus chamarmos a polícia, mas Draven recusou. Afirmou que aquilo decerto havia sido obra de algum desocupado. Então eu e Bernie fomos embora.

    Bernie pagou-me 2 mil libras em notas limpas. Emprestei a câmera a ela para que ela revelasse as fotos - mas ela nunca me devolveu. Em vez disso desapareceu sem deixar rastro.

    Dias depois ouvi dizer que Serina assinara uma certidão que autorizava a internação de Draven no Hospício Wimbledon, onde ele passou a receber visitas regulares de sua família.

    Anna Condry morreu atropelada no ano seguinte. Serina faleceu logo depois - por causa de uma overdose de cocaína.

   Susie então foi levada para as montanhas em Bellinzona. Lá passou a morar com seu avô - Desmond Bundy.


Fim.

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