Encontro no Oriente Médio

    Qual foi o ser mais perverso e sádico que já viveu na Terra? Quem mereceria o título? Quem é aquele único ser humano que lidera todos os criminosos malignos que já viveram? Quem é aquele cujos atos foram tão demoníacos que deixariam o mais experiente assassino penalizado? A resposta estaria em uma imagem. A foto de um homem e uma mulher. Ambos estão lambuzados de sangue. A mulher está deitada na terra. Está agonizando em sua dor. Há uma abertura em sua barriga. Em frente a ela está ajoelhado o homem. Está com uma faca de açougueiro na mão esquerda. Mas essa não é a única coisa que ele segura. Em sua mão direita existe algo. Um objeto indefinível. Algo como um boneco ou um bicho de pelúcia. O homem encara o objeto como se o admirasse muito. Como se aquilo lhe inspirasse e lhe encorajasse a continuar realizando carnificinas. Tendo prazer no sofrimento alheio. Na confusão. No mal. Em tudo o que existe de repugnante no Universo. E eu tive o desprazer de conhecê-lo. O nome dele era...

   - John Jail. Ele é um terrorista psicótico judeu. Possui profundo conhecimento artístico e alta capacidade de improvisação. Também tem um número considerável de simpatizantes na Grã-Bretanha. Nasceu em Chicago em 1922. Em 1931 ele apunhalou e matou um garoto de dez anos em uma enfermaria. No ano de 1942 ele arrancou os braços e as pernas de uma prostituta e a manteve viva em um porão por um ano inteiro. E no ano passado mandou alvejar um repórter britânico. O repórter sobreviveu mas não vai andar nunca mais.

    - E a vagabunda?

   - Natalia Ivânitch. É fabricante de drogas. Seu pai nasceu em Moscou e sua mãe em Bordeaux. Ela nasceu em Paris em 1935. Cresceu num orfanato na França de Vichy. É defensora da eugenia e do pangermanismo. Possui uma base de operações terrorista na Argélia.

    - Uma nazista? E por que diabos um judeu iria querer negociar com uma nazista?

    - É o que eu preciso descobrir.

    - De quanto precisa?

    - Do bastante para pagar as passagens de ida e volta.

    - Tudo bem. Mas eu vou no pacote.

    - Por quê?

    - Porque eu quero.

    - Deixe-me dizer uma coisa, querida. Esses dois sofrem de psicose extrema. Você entende? Eles matam pessoas na primeira oportunidade. Se você quer ir até lá só para saciar sua curiosidade é melhor pensar bem. Você não vai querer saber o que se passa em suas mentes.

    - Meu caro, você está me confundindo com alguém que dá a mínima. Eu vou pagar as passagens pessoalmente. Eu já decidi. Quando podemos ir?


1


   Um homem estava sentado em seu terraço lendo "A dama do lago", de Raymond Chandler. Ele tinha iniciado a leitura havia poucos minutos. Ele fixava os olhos nas letras com muita concentração. O sujeito tinha cerca de 1,75 metro de altura e estava sentado com uma perna sobre a outra exatamente como os americanos costumam fazer. Apoiava o rosto no punho fechado. O homem estava em boa forma e suas roupas eram da mais alta qualidade. Vestia calças de lã e meias de seda. Sapatos pretos também faziam parte de seu vestuário costumeiro.

    Ao terminar de ler o primeiro capítulo o homem suspirou. Olhou para frente. Pôde ver a rua. Seu nariz apontava para noroeste. Ele tinha uma boa visão das areias quentes do Egito e de alguns transeuntes com seus camelos. Era possível ver algumas moradias e construções patrimoniais do governo. Mais adiante havia um pequeno oásis.

    O sujeito apreciava a vista até que notou um carro se aproximando. Era um conversível dos anos 30. Ainda estava em perfeitas condições. Uma mulher o dirigia. Era a única pessoa no veículo. Ela estacionou o carro em um lugar onde o homem podia ver. E ele olhava atentamente. Ela saiu do carro com um lenço na cabeça para que seu penteado não fosse arruinado pelo vento. Vestia um paletó e uma saia justa que escondia os joelhos. Também usava salto alto. Caminhou em direção à porta de entrada da residência. O homem já não podia mais vê-la.

    Ele então amarrou melhor seu robe de cetim de seda e desceu para uma parte mais baixa do terraço. Nesta havia três paredes que cercavam o cômodo. Apenas a maior delas não possuía uma porta. Onde deveria haver uma quarta parede existia apenas uma amurada na qual ele poderia se debruçar e observar o pôr do sol. A área desta sala era menor do que a outra. Um divã e uma poltrona estavam frente a frente em cima de um tapete de pele de ovelha. Entre os dois havia uma mesinha. Em cima desta um narguilé. E quatro quadros de Salvador Dalí enfeitavam as três paredes.

    O homem começou a voltear pelo cômodo com as mãos atrás das costas. Parecia um pouco impaciente. Ele ficou assim por um minuto até que ouviu baterem à porta.

     - Entre - disse.

    A porta se abriu e um homem alto de turbante apareceu. Ele usava roupas finas de algodão e uma barba cacheada. Disse:

     - A embaixatriz está aqui.

    O inglês do grandalhão não era materno. Seu sotaque era local ou talvez turco.

    - Bom. Traga-a até aqui. Deixe a porta aberta enquanto isso.

    O guarda assentiu com a cabeça. Saiu e retornou alguns minutos depois com a mulher atrás de si. Ele aguardou a mulher entrar no cômodo e depois olhou para seu chefe.

    - Saia agora, Osman - ordenou este.

    O grandalhão obedeceu e fechou a porta atrás de si.

    O homem e a mulher ficaram se olhando. Estavam a três metros um do outro.

    A mulher era bonita. Com o salto alto ela atingia a altura do homem. Ela parecia ter menos de trinta anos e o estado de seu corpo era ainda melhor que o de seu veículo. Seu cabelo era ruivo. A pele era branca como creme batido. Os olhos eram azuis e o nariz era fino e reto. Ela usava rímel e um batom vermelho. Também um par de óculos de aro grosso.

    O homem quebrou o silêncio.

    - Você é Natalia Ivânitch?

    A mulher respondeu:

    - Sim, eu sou Natalia Ivânitch. Presumo estar falando com Jonathan Hyman?

    - Me chame de Jail, por favor.

    - Jail. Peço que me perdoe pela demora. Tive de tomar dois aviões para chegar até aqui.

    Ela falava com um sotaque francês extremamente carregado.

   Ele sentou. Tirou uma maleta de debaixo da poltrona e a pôs sobre o colo. Retirou dela uma garrafa quase cheia de Scotch e dois copos pequenos. Colocou-os sobre a mesinha e guardou a pasta. Encheu os dois copos até a metade.

    - Gelo, água, soda? - disse.

    - Não, merci.

    - Prefere puro?

    - Não vou beber, obrigada.

    Jail despejou o conteúdo de um copo no outro e bebeu um pouco do uísque.

    - Sente-se, Srta. Ivânitch.

    Ela caminhou até o divã e sentou-se sem a menor timidez. Cruzou as pernas.

    - Então isso vai mesmo acontecer? - disse ele.

   - Você receberá a mercadoria dentro de cinco dias. Metade do dinheiro das vendas deverá ser entregue mensalmente a um homem chamado Neeson. Homer Neeson. Ele estará na embaixada americana na primeira sexta-feira de cada mês, das 11h00 às 13h00.

    - Como vou identificar tal homem?

    - Ele se apresentará a você. Apenas esteja lá pessoalmente.

    - Muito bem. Estarei lá.

    - Sei que sim.

   Natalia fitava os olhos de Jail. Ela parecia ter os sentimentos calejados e uma personalidade monstruosa. Mas apesar do queixo firme e olhar severo havia algo naquela mulher que a tornava um tanto delicada. Pequena. Atraente.

    Jail bebericou seu Scotch.

    Ela ficou pensativa.

    Ele limpou a garganta e disse:

    - Fui informado de que receberia uma amostra gratuita do produto.

    - É claro.

   Ela tirou do casaco um pequeno saco de papel. Jogou-o para Jail. Ele o apanhou e retirou dele um minúsculo cone branco. Cheirou-o como e fosse um charuto e encostou a ponta da língua numa das extremidades. Depois pôs a ponta mais fina do objeto na boca e acendeu-o com um isqueiro. Deu uma tragada. Manteve a fumaça dentro de si por alguns segundos. Franziu a testa. Parecia estar decidindo se aprovava ou não o sabor da substância. Então soltou a fumaça pelas narinas e disse:

    - Um pouco picante, mas não de todo ruim.

    - É uma sensação nova, mas um pouco addictif.

    - Posso perguntar a fórmula?

    - Se eu disser, você não compra.

    - Só estou preocupado com os efeitos.

    - Não é nada nocivo.

    - A senhorita gostou?

    - Il va sans dire!

    Jail fitou a droga em suas mãos e esticou o braço. A mulher estranhou por um momento. Depois:

    - Não, obrigada.

    - Por quê?

    - Esta é sua.

    - A senhorita me perdoará se eu supor que não acredita na qualidade de seu artefato.

   - Desculpe? Oh, claro que acredito - disse ela, um pouco insegura. - Só não estou com vontade, agora.

    - Se a senhorita não fumigar isto, aqui e agora, não haverá negócio.

    A expressão séria de Jail começou a afetar a mulher. Ela parecia fazer o máximo para esconder seu nervosismo. E para não provar a droga. O tom de voz de seu anfitrião retornou sombrio:

    - Meu braço está cansando.

   Ela apanhou o instrumento dos dedos de Jail. Ele cruzou os braços e esperou pacientemente. Mais hesitante do que nunca ela pôs o cone entre os lábios. Ele a olhava como um professor. Sua aluna estava efetuando seus primeiros exercícios de Cálculo. Ela deu uma tragada lenta e intensa e fechou os olhos. Depois de algum tempo soltou a fumaça pela boca. Ficou com os olhos fechados por alguns segundos.

    - Eu preciso ir ao toilette - disse. Então se levantou.

    - A senhorita está bem? - disse Jail. Pareceu estranhar a reação da mulher.

    - Sim, sim, só um pouco tonta.

    Jail então percebeu que um pouco de sangue escorria pelas pernas dela.

    Como ela não o percebera Jail disse:

    - Srta. Ivânitch... Receio que a senhorita esteja tendo um pequeno... fluxo.

    - Pardon?

    Jail apontou para os joelhos da mulher.

    - A senhorita está tendo um fluxo de sangue.

    Ela olhou para baixo.

    - Oh! Prague...

    E acrescentou enquanto ficava cada vez mais sorridente e corada:

    - C'est la guerre. Só preciso ir ao toilette.

   Ele se levantou, um pouco perplexo e sem jeito. Não sabia o que dizer. Ela tentava permanecer calma, mas tentava não transparecer que estava constrangida. Na certa já estivera em situações assim, por alguma razão.

    - Sr. Jail. Toilette, por favor.

    - Claro, claro. Siga-me.

   Os dois saíram pela porta pela qual ela havia entrado. Ela andava desajeitadamente. Jail sabia que qualquer mulher na situação dela andaria do mesmo jeito.

   Os dois desceram uma escadaria ao ar livre que dava para uma sala no segundo andar da construção. Era um lugar fechado. Ao fundo do cômodo havia uma porta. Era o lavabo.

     - Fique à vontade. Espero aqui - disse Jail.

    Ela entrou no banheiro e fechou a porta sem olhar para ele.

   Ele se sentou num sofá e suspirou. Apoiou a cabeça nas mãos e os cotovelos nas pernas. Parecia estar com remorso por ter forçado a mulher a fumar a droga. Como se isso tivesse algo a ver com o fluxo de sangue. Por outro lado, ele conhecia a reputação da mulher. Sabia que ela era perturbada e eventualmente desequilibrada. Isso foi confirmado quando ele começou a escutá-la falando sozinha por trás da porta. Ela falava em dialeto francês. Esse idioma era pouco dominado por Jail. Ele bateu na porta.

    - Srta. Ivânitch? Está tudo bem?

    Ela gritou lá de dentro:

    - Não estou pronta ainda, Jean!

    Ele esperou por mais um minuto ou dois e depois voltou a bater.

    - Está pronta, agora?

    Não houve resposta.

    - Está me ouvindo, Srta. Ivânitch?

   Ele pôs a mão na maçaneta e a girou. Ela não trancara a porta. Estava deitada no chão. Estava de lado e com os olhos fechados. Parecia estar morta.

  - Meu Deus... - disse Jail. Começou a andar apressadamente pela casa, chamando seus subordinados pelos nomes.


2


    Ela acordou. Estava deitada em um sofá de dois assentos na sala ao lado do banheiro. Jail estava sentado em uma poltrona próximo a ela. Ela olhou para ele e contraiu as sobrancelhas.

      - Que horas são? - disse.

      - Quase 17h00.

      - Onde estão meus óculos?

      - Sobre a pia do lavabo, onde você os deixou. Gostaria de uma xícara de café?

      - Sim, por favor.

     Ele serviu uma xícara de porcelana de café do bule que estava na mesinha ao seu lado. Entregou-a à mulher.

        - Tome. Sente-se.

       Ela sentou-se no divã e recebeu a xícara. Começou a beber dela em pequenos goles.

       - Não sabia que vocês possuíam isto aqui.

       - Quer dizer o café? Ah, sim. Eu possuo.

      Ele serviu uma xícara para si e começou a soprar o líquido fumegante dentro dela.

      - Désolé. Por antes - disse a mulher. Ela então descansou a xícara no pires. Jail fez o mesmo.

      - Por quê?

      - Ainda não me acostumei com a mercadoria. Ela ainda me faz imaginar coisas.

     Ela abriu um tímido sorriso e continuou:

     - Não passo de uma novata estúpida.

    Jail fitava-a como se sentisse pena. Pôs seu café na mesinha e levantou-se. Sentou-se no mesmo sofá que a mulher. Tirou do bolso do roupão uma cigarreira e ofereceu um cigarro a ela. Ela tomou um e o pôs na boca. Jail o acendeu com seu isqueiro. Ela deu uma grande tragada e soprou uma nuvem que logo deixou a sala inteira com cheiro de nicotina.

     Às 18h00 eles estavam outra vez na sala do divã. Estavam comendo camarões com molho de tomate e bebendo champanhe. Ela com seus óculos de grau. Ele fumando o narguilé e olhando para ela. Ela mastigava seriamente a comida. Segurava um camarão entre o indicador e o polegar da mão esquerda e na direita estava seu bloco de anotações. Naquele momento este era dono de quase toda a sua atenção.

      - O que é isso? - perguntou Jail.

     Ela não respondeu. Estava muitíssimo concentrada no que estava lendo.

     - Srta. Ivânitch.

    Ela olhou para ele com a testa franzida.

    - Hein?

    - O que é isso que está lendo?

    - Um bloco. - E voltou a fixar os olhos nas anotações.

    - E o que tem aí, se posso perguntar?

  Ela não prestou atenção. Estava olhando de perto para o bloco e balbuciando palavras em francês.

    Ele suspirou e levantou-se sem soltar sua taça. Andou até ela e ficou olhando-a de cima. Depois sentou-se ao seu lado. Estava obviamente curioso quanto ao conteúdo do bloco. Mas algo o impediu de completar seu objetivo. Sua atenção estava agora voltada para a mulher. Para o pescoço dela para ser exato. Ela havia usado um tipo de sabonete um tanto moscado. Ele aproximou suas narinas da mandíbula dela e inspirou profundamente.

    Ela ergueu vagarosamente os olhos das anotações e dirigiu-os à frente. Suas pupilas dilataram-se como se ela estivesse em choque. Jail começou a beijar-lhe o pescoço ternamente. Ela murmurou:

     - O que está fazendo?

    Ele continuou na mesma função. Mas não se sentiu incomodado em responder.

    - Tentando reconhecer o seu sabonete. Caswell-Massey?

    Ela forçou uma risada.

    - Você está me subestimando, Sr. Jail.

    Ela se levantava graciosamente. Tentava se esquivar educadamente dos beijos de Jail.

   - Sou uma simplória mulher francesa com um passado triste, um presente feliz e um futuro incerto. Posso ter a aparência de uma secretária de dentista, mas sou esperta o bastante para me virar num país comme ça.

    Jail sorriu e abaixou a cabeça. Começou a deslizar o indicador pela boca da taça.

    - E meu sabonete - disse ela - é Chanel.

    - Hum... Parece Caswell-Massey.

   Então foi a vez dela de sorrir. Ela pegou a cigarreira e o isqueiro de cima da mesa do narguilé e acendeu um cigarro. Sentou-se na poltrona de Jail. Este aprumou-se no divã. Ainda sorria, mas estava pensativo.

    - O que carrega em sua consciência, Sr. Jail?

    Ele diminuiu o sorriso. Desviou os olhos do champanhe e olhou para a parede à sua direita. Havia nela uma gravura média e retangular. A imagem retratava um homem e uma mulher. Entre estes estava um menino. Estavam vestidos de um modo que muitos chamariam de "requintado". Jail começou a falar como se estivesse sozinho em seu terraço.

    - Sabe, quando eu tinha dez anos, vi meu pai com uma gaiata. Não era a esposa dele. Não era minha mãe também. Ela tinha o corpo muito bonito, da cabeça aos pés. Eu não consegui ir embora. Não consegui desviar o olhar. Eu só queria entender o que estava acontecendo, porém... eu não desejava ter de perguntar. Foi alguns dias depois que eu decidi tomar uma coisa que há muito me diziam: "Deus não dá a mínima".

    Ela não sorria mais. Reparava atentamente nos lábios de Jail. Não o faria melhor nem se fosse surda. Ele continuou.

    - Ela foi o primeiro ser que eu abati. Seu nome era Grace. Ela tinha vinte anos de idade. Cabelos loiros anelados, olhos azuis, bochechas rosadas... E ela gostava muito de lagrimar. Às vezes lagrimava por horas. Era a única coisa que me deixava empalamado. Sua voz, seus gritos que lembravam rangidos, sons que me provocavam ânsias de vômito. Certa noite tentei abafá-los com uma almofada, mas acho que fiz isso por tempo demais. Quando revelei sua verônica novamente, suas bochechas não estavam mais rosadas. Suas vistas não eram mais azuis. Nenhum oxigênio saía de suas narinas. Ela sofria de uma doença. Acho que era abafamento. Na hora seguinte meu pai chegou em casa, foi até a cozinha, abriu a porta da prateleira e encontrou Grace lá dentro, sem os braços, sem as pernas... e sem os olhos. Sabe o que houve em seguida?

    Ela balançou a cabeça negativamente. Seus olhos estavam mais atentos do que antes.

    - Finou-se. Não demorou três minutos. Possivelmente quatro. Foi a partir daquela hora que fiquei convencido. Ele nem sempre está desimpedido quando precisamos Dele, mas permite que façamos justiça com as próprias mãos, ocasionalmente. - Jail fitou o olhar de Natalia. Os olhos dele estavam sorridentes. Só os olhos.

    Ele continuou:

    - Acredito que você e seu... povo... compartilhem de minha opinião.

    Ela voltou a sorrir.

    - É mesmo? Suponho que todos os judeus tenham o mesmo senso de justiça que o senhor.

    - Sua suposição é compartilhada por meu ser.

   Ela assentiu com a cabeça e bebeu o que restava em sua taça num gesto treinado de pulso. Se preparou para fazer um comentário quando algo chamou sua atenção na parede atrás de Jail. Disse:

    - Que pintura é aquela?

    - Pintura? - Ele olhou para trás. - Oh, não é pintura. É uma foto.

    - Me permite olhar mais de perto?

    - Indubitavelmente. Não, por favor, não se erga. Eu trago a foto até aqui.

   Ele andou uns dez passos até a parede e retirou dela o quadro. Este media uns 30 cm de altura por uns 40 de comprimento.

    - Aqui está.

    Ela segurou a foto emoldurada. Olhou para ela intrigada.

   A foto retratava uma mulher estirada no chão. Sua barriga estava ensanguentada. O intestino grosso estava à mostra e saltava para fora do corpo. Um homem estava ajoelhado na frente dela. Uma poça escura se formava debaixo dele. Ambos os seus braços estavam encharcados de sangue. Em uma das mãos ele segurava uma faca. Sua lâmina tocava o solo. Na outra mão o homem tinha algo escuro e de aparência quase indefinível. Algo de 15 cm de comprimento. Ele levantava o objeto na altura do pescoço e o fitava com um toque de desprezo no olhar.

    - Algo me diz que é o senhor na foto.

    Jail se sentou no braço da poltrona onde Natalia estava.

    - Sim, exato.

    - O que esta mulher fez para merecer... isto?

    Ele suspirou e disse:

    - Ela... Isto aconteceu no final da grande conflagração. Ela era uma espia italiana.

    - O que é isso que o senhor está segurando? Não consigo definir. Seria um boneco de vodu?

    Ela aproximou seu rosto da imagem. Tentou forçar a visão. Realmente parecia uma boneca mas não havia como ter certeza. Estava prestes a dar outro palpite quando ouviu a inabalável voz de Jail.

    - É um bebê.

    Ela virou-se para ele. Abrira bem os olhos. Porém, não expressava emoção alguma.

    - O senhor abortou um bebê com um punhal?

    Ele respondeu como se ela houvesse perguntado se ele já comera salmão.

    - Afirmativo.

  Ela se levantou vagarosamente sem tirar os olhos dele. Começou a se afastar na mesma velocidade. Andava de costas. Abriu um leve sorriso.

    - Você está bem? - disse ele. Estava sério.

    Ela alargou o sorriso sem dizer nada.

    - Você parece sôfrega, Srta. Ivânitch.

   Ela começou a rir. Ria alto. Não eram risadas discretas. Ela ria como se tivesse ouvido uma piada suja ou abusado do álcool. Ou como se estivesse possuída. Jail sorriu.

    - O que houve? O que mais eu abortei? - disse.

    Ela escondeu o rosto com as mãos. Ria e soluçava ao mesmo tempo. Precisou sentar-se no divã. Jail se aprumou confortavelmente na poltrona. Esperou até que as gargalhadas da mulher cessassem. Quando isso aconteceu ele disse:

    - Poderá falar, agora?

   Ela levantou a cabeça e sorriu tristemente para ele. Havia lágrimas em seus olhos que em seguida lhe escorreram pelas faces.

     Jail disse:

     - A senhorita aceita um copo d'água?

    Ela balançou a cabeça negativamente sem desviar os olhos dele e sem dizer nada.

    Jail pareceu confuso.

    - Bem, vejo que a senhorita ignora muitos métodos de tortura hitlerista. A mulher fez jus ao que teve. Muitos de meus condiscípulos judeus foram assassinados por causa dela. Quanto à cria... Bem, o que realizou-se com ela realiza-se todos os dias, não? Mas de uma forma um pouco desigual. Porém, ninguém fica tão chocado.

    - Não estou chocada. - a voz dela estava rouca. - Você paga o mal com o mal. C'est la guerre.

    - A senhorita está chocada. Desculpe-me, por quem a senhorita disse que foi criada?

    - Alemães. - Ela limpava as lágrimas do rosto com as mãos.

    - Imagino - continuou - que você tenha muitas punições planejadas. Precisará de ajuda.

   - Ajuda? - Ele pareceu surpreso. - Por que eu aceitaria ajuda de alguém que discorda de meus métodos? Sei que a senhorita pensa que sou louco. Não acredita em meus ideais. Por que diabos a senhorita compactuaria com eles?

   - Porque não tenho medo de morrer. Sei que existe esse risco quando lutamos por justiça. O senhor duvida da minha lealdade?

    - Bem, sim. Digo, a senhorita não é a primeira mulher que tenta me fazer de babaca. Existem mais alguns homens como Osman trabalhando aqui. Eles as levam ao porão e abusam delas todos os dias, até elas engravidarem. Depois lhes deixam presas lá embaixo e elas morrem de sede. Porém, não será assim no seu caso. Nunca seria. Eu gostei da senhorita.

     Jail meteu a mão embaixo da poltrona e retirou de lá uma Walther.

     - Deveras gostei - continuou. - Você é uma garota legal, bonita e inteligente. Infelizmente terei de eliminá-la. Adeus.

    Ele disparou na testa de Natalia antes que esta pudesse dizer qualquer coisa.

    Alguns segundos se passaram.

    Ela estava estirada de costas sobre o divã. A cabeça encostava no chão. O par de óculos jazia fora de seu rosto.


3


    Jail girou o revólver no dedo e depois ficou olhando para ele. O pôs sobre a mesinha redonda e descansou a perna direita no braço da poltrona.

    Decidi que era a hora de agir. Fiz um sinal com a cabeça para meus dois colegas que estavam escondidos em outros dois cantos do cômodo. Eles entenderam. Jail pareceu um pouco surpreso quando cercamos sua poltrona. Caminhávamos devagar. Eu me aproximava por trás e os outros dois pela frente de Jail. Ele não fez grande alarde porque nós três tínhamos nossos revólveres em mãos. Jail sorriu educadamente. Tirou a perna do braço da poltrona.

   - Ora, mas que gentil surpresa, senhores. É bom vê-lo novamente, oficial Sharif. Sr. Harper, é sempre um prazer. Hum... O senhor eu não conheço...

    Jail falava com o terceiro homem. Um sujeito de trinta e poucos anos que usava um bigodinho. Este olhava friamente para Jail. Jail, por sua vez, olhava alternadamente para cada um.

     - Ninguém me apresentará ao homem? - disse.

     - Este é o pai de uma de suas vítimas, Jail - falei. - Seu nome é Williams. Prince Williams.

     - Sr. Williams. - Jail esticou a mão. Williams não a apertou.

    - Acabou, Jail - disse o policial. Gravamos toda a sua conversa; tudo o que você disse na última hora.

    - O que tinha de especial em minha conversa que fizesse jus a ser gravado?

   - Sejamos honestos hoje - disse eu. - Só hoje. Você deve saber que é um homem procurado na Grã-Bretanha.

   - Ah! Osman! Afabilidade sua aparecer. Sr. Harper, oficial Sharif, senhor... Como é mesmo seu nome? Prince? Bem, quero lhes apresentar meu criado Osman. Os outros três homens, com as metralhadoras, são meus asseclas egípcios. Não consigo memorizar seus nomes. Receio serem um pouco árduos de se pronunciar. Agora, oficial Sharif... Por que o senhor e seus protegidos não largam suas pistolas? Caso contrário, calculo que suas caveiras ficarão perfuradas de tal modo que usá-las-ei para regar minha horta de ópio. E, se meu desejo tem algum valor para o senhor, eu preferiria não matá-los. Honestamente, oficial, tenho o senhor em minha mais alta estima.

    Os dois asseclas de Jail não se mexeram. Osman veio e recolheu nossas pistolas educadamente. Jail serviu quatro taças de champanhe.

    - Agora que meu criado lhes recolheu os argumentos - disse -, receio que poderei falar sem ser interrompido.

   Ele acenou com a cabeça para Osman. Este retirou uma adaga da cintura e cuspiu na lâmina curva. Depois esfregou-a com a manga da túnica. Enquanto isso Jail explicava:

    - Oficial Sharif, lhe direi o que sucederá. Meu criado Osman fará um pequeno corte na língua de seu protegido, o Sr. Harper aqui. Depois ele fará um corte um pouco maior na língua do senhor... hum... Prince. E finalmente ele tirará fora metade da sua. Em seguida eu irei...

     - Você vai pagar pelas crianças que matou, seu amalucado! - disse o Sr. Williams.

  Jail tomou sua Walther e disparou cinco tiros contra o peito de Williams. Depois virou raivosamente a mesinha com as taças de champanhe e o narguilé e estes espatifaram-se no chão. Depois ele fechou os olhos e apertou as mãos abertas contra a cabeça.

    - Odeio ser interrompido.

    Ele ficou naquela posição por mais uns dez segundos.

    Quando tornou a olhar para mim e as demais pessoas teve uma surpresa. O Sr. Williams estava vivo. Não só estava vivo como também estava em pé e nas mesmas condições de antes. Não havia ferimento algum em seu peito.

    Jail arregalou os olhos. Disse:

    - Mas que diabos...

    O som de uma arma sendo engatilhada atrás de sua cabeça o interrompeu novamente. Ele virou-se.

    Era ela. Era a mulher. A mulher que ele havia matado. Ela achava-se viva e estava prestes a se vingar. A expressão dela era de seriedade.

     - Então você não gosta de ser interrompido, animal?

    O sotaque dela havia se transformado. Não era mais francês. Agora era escocês.

    - Fez um bom trabalho, mocinha - disse Sharif. - Graças à recomendação do Sr. Harper.

   - Nunca fui a favor disso - disse eu. Tomava de volta minha arma enquanto Sharif e Williams tiravam as metralhadoras dos guardas. - Mas sei que o que Charlotte Lane quer ela consegue.

    - Porque demoraram tanto? - disse Charlotte. - Fiquei uma hora na presença deste assassino!

    - Era necessário. Pare de falar e concentre-se em Jail.

    - "Era necessário, era necessário..." Da próxima vez eu cuido do festim e você cuida da distração.

    Jail soltou uma risada involuntária.

    Charlotte estranhou.

    - O que é tão engraçado, meu chapa?

   - "Distração", colega? - respondeu Jail. - Por favor... Da próxima vez invente uma história melhor para a sua heroína. Porque tudo o que você disse na última hora pareceu aos meus olhos como que uma apresentação escolar de segunda classe. A propósito, o que havia no artigo?

    - Nicotina com sal.

   Ela tirou a peruca ruiva revelando uma cabeleira negra e mais volumosa e virou seu formoso rosto para mim.

    - Bem, a verdadeira Natalia Ivânitch está no hospício e este safado miserável também vai pra lá. O que faremos agora, Clint Harper?

    - Esperaremos os vigilantes. Não devem demorar agora. Sr. Sharif?

    - Não demorarão, Sr. Harper - disse Sharif. Ele olhava a rua por cima do parapeito. - Aliás, já estão aqui.

     Jail fitava Charlotte. Expressava apenas um charmoso sorriso. Isso chamou a atenção dela.

     - O que está olhando?

     - Em outras circunstâncias, você e eu formaríamos o mais belo casal.

     - Quero que você se dane, babaca. Você me dá nojo.

     - Não, você me preza. E eu prometo que voltarei a vê-la.

    Ela respondeu somente com um gesto.

   Quando os tiras chegaram receberam de Sharif uma instrução. Deveriam levar o homicida de nome Jonathan "Jail" Hyman para o Hospício Wimbledon em Londres a pedido do embaixador Charles Franklin. Lá ele deveria receber tratamento apropriado.

    Os policiais revistaram e levaram Jail e todos os seus nove empregados. Ele se despediu de nós elegantemente.

    Só então Charlotte jogou-se de costas no divã e começou a ofegar. Sem largar o revólver ela esfregou o pulso na testa e o escabichou.

     - Estou suando - ela disse.

     - Você não usa Tampax? - disse eu.

     - Não gosto de Tampax. Me sinto presa.

     - Inacreditável...

    Sharif me perguntou se desejávamos uma carona de volta ao hotel. Aceitamos e chegamos lá em vinte e cinco minutos.


Fim.

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